Passadas duas décadas do fim do “monopólio” da Casan sobre o saneamento básico, na região da Foz do Rio Itajaí-Açu, a maioria dos municípios ainda não conseguiu resolver suas deficiências de esgoto, e praticamente todos convivem com incertezas sobre o futuro do abastecimento de água.
Falta de saneamento básico não é compatível com saúde da população e desenvolvimento -aí incluído turismo de qualidade-, por isso a implantação dos sistemas de tratamento de esgotos deveria ter sido prioridade dos prefeitos, mas não foi.
O principal motivo é econômico, um sistema de esgotamento sanitário exige capital intensivo e oferece lento retorno.
“Para ter uma ideia, a rede do Estaleiro e Estaleirinho [bairros de Balneário Camboriú] custará mais de R$ 10 milhões e, considerando mil casas que tem lá, ao custo da tarifa de água e esgoto não superior a R$ 50 mensais, a obra nunca vai se pagar”, exemplifica Douglas Costa Beber Rocha, diretor geral da Empresa Municipal de Água e Saneamento – Emasa.
Diferentes gerações de políticos cultivaram a tese que “cano enterrado não dá votos”, um equívoco cuja conta está sendo cobrada agora, com os negócios afetados pela poluição das praias, e a sociedade mais consciente sobre a correlação entre saúde pública e saneamento básico.
O gestor da Emasa entende que a primeira condição é a vontade de fazer. “É obra enterrada, após passar a rede ninguém mais vê, ninguém lembra, é diferente de fazer asfalto, ou uma ponte” pontua.
Parcela da sociedade também não colabora com o esforço de saneamento, o que resulta na poluição dos rios e praias, mesmo em cidades com boa cobertura por redes de captação.
É a falta de responsabilidade socioambiental, mencionada no título dessa reportagem, que se manifesta nos dois municípios mais bem equipados da região para tratamento de esgoto: Balneário Camboriú e Itapema.
Em Balneário Camboriú, que ostenta alguns dos imóveis mais caros do país, vigora uma lei -com prazo para cumprimento já prorrogado quatro vezes-, exigindo de edifícios e comércios uma Declaração de Regularidade Sanitária, mas o quadro abaixo demonstra em números o desrespeito coletivo:
O resultado dessa insensatez é que são quase inúteis os esforços da prefeitura de Balneário Camboriú para despoluir os rios da cidade, dentre eles o Marambaia, que corre paralelamente à Praia Central, na zona mais rica e sofisticada.
Casan: problemas têm origem na década de 1970
As cidades do litoral centro-norte catarinense foram vítimas durante décadas de uma política de saneamento capenga, por parte da Companhia Catarinense de Águas e Saneamento – Casan.
Fundada em 1971, no período mais duro da ditadura militar, como filhote do Plano Nacional de Saneamento, a Casan foi guiada pelo propósito do Estado centralizar as atividades, o que resultou em regiões com abastecimento de água razoável e praticamente zero em redes de esgoto.
Não havia opção, os municípios só teriam acesso a dinheiro público se os serviços fossem concedidos à Casan, que na maioria das vezes só fornecia água e esquecia o esgoto.
Os efeitos foram nefastos, centenas de milhares de pessoas viviam -e ainda vivem- sem saneamento básico.
Sendo verdade que cada moeda gasta em saneamento (incluindo coleta e tratamento de lixo), evita o gasto de quatro a nove vezes em saúde, pode-se creditar à Casan também esse ônus à sociedade catarinense.
O quadro abaixo mostra que entre algumas das principais cidades litorâneas de Santa Catarina, apenas Balneário Camboriú tem cobertura por esgotos próxima de 100%; que Itapema fez grandes progressos e as demais apresentam realidades ainda ruins.
Itajaí – Pioneira em romper com a Casan, ainda tem baixa cobertura de esgoto
Cobertura esgoto – 14,93% – Cobertura água tratada – 99,07%
Pontos predominantemente impróprios para banho no último verão: 1 em 5.
Itajaí serviu de exemplo às cidades vizinhas, ao romper em 2003 com a Casan e criar o Serviço Municipal de Água, Saneamento Básico e Infraestrutura (Semasa).
Municipalizar era a melhor alternativa na ocasião, porque os marcos legais para as concessões só se consolidaram quase duas décadas mais tarde.
Quando a Semasa foi criada, Itajaí tinha rede de esgotos apenas na Avenida Hercílio Luz, um bom exemplo do descompromisso da Casan com os serviços a ela concedidos.
Em uma década, o Semasa implantou 80 Km de rede de esgotos e uma estação de tratamento de efluentes, infraestrutura indispensável para uma cidade que, crescendo em ritmo acelerado, se tornou a segunda maior economia de Santa Catarina e 34a do Brasil, pelo critério Produto Interno Bruto.
Após o início promissor, os investimentos em esgoto evoluíram mais lentamente e a cobertura atual é menor que 15%, segundo dados de 2020 do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento. Ou 23% pelos números atualizados, fornecidos pelo diretor geral do Semasa, Rafael Luiz Pinto.
Atualmente são atendidos apenas os bairros Praia Brava, Fazenda, Fazendinha, Cabeçudas, Centro e parte da Vila Operária.
Rafael detalhou que com as obras executadas, e outras planejadas, a previsão é chegar a 50% de cobertura nos próximos três meses (São Vicente, Cidade Nova, Cordeiros e Murta) e 80% em dois anos (São João, São Judas, Nossa Senhora das Graças, Dom Bosco e o restante da Vila Operária).
O que salta aos olhos é que uma cidade líder em atividades portuárias, educação universitária, artes, cultura, saúde pública e privada, com quase 162 anos de idade, ainda não consegue cuidar do seu esgoto.
Segundo o executivo do Semasa, a segurança do abastecimento de água -que atende também a cidade de Navegantes-, foi normalizado após superadas dificuldades com a barragem de cunha salina.
Existem projetos, em execução ao longo dos próximos 20 anos, para sistemas de medição e controle, construção de novos reservatórios e estações de tratamento, além da ampliação de redes.
A vizinha Navegantes, por sua vez, recebe água de Itajaí, não tem rede de esgotos e está emporcalhando suas praias. No último verão, dos quatro pontos de análise da água do mar pelo Instituto do Meio Ambiente, três estavam predominantemente impróprios para banho.
Balneário Camboriú – os maiores desafios são estoque de água bruta e o combate às ligações clandestinas
Cobertura água: 100% – Cobertura esgotos – 95%
Pontos predominantemente impróprios para banho no último verão: 7 em 15.
Em meados dos anos 1990, a Casan era execrada pela população de Balneário Camboriú que, dependente do turismo para se sustentar, sofria com esgoto escorrendo nas praias e falta d’água no período de maior faturamento, a temporada de verão..
Verticalizada e adensada, Balneário Camboriú foi extremamente rentável para a Casan que investia quase nada em melhorias, “levando o dinheiro para fora”, como foi dito e repetido em diversas e acaloradas reuniões de lideranças comunitárias com diretores da autarquia estadual ao longo dos anos.
Havia urgência, porque tão grave quanto a falta de água era a deficiência da rede de esgotos, que “matava” a cidade pouco a pouco, no competitivo mercado dos destinos turísticos.
Neste cenário o prefeito da época, Rubens Spernau, estava empoderado pela população para rescindir o contrato com a Casan, mesmo sob ameaças e processos da estatal.
A Empresa Municipal de Água e Saneamento (Emasa) surgiu em 2005, com a proposta de trabalhar em conjunto com a cidade de Camboriú, mas os vereadores e o prefeito da vizinha cidade não quiseram participar de uma empresa intermunicipal.
Na época da municipalização do serviço, Balneário Camboriú tinha rede de esgotos na área central e uma estação de tratamento por lagoas de estabilização, sistema que foi ampliado, aperfeiçoado e hoje se aproxima de 100% de cobertura territorial.
Desde 2010 a população de Balneário Camboriú, segundo o IBGE, aumentou cerca de 50%, não entrando nesta conta os turistas que em alguns momentos de altíssima temporada passam de 200 mil, como mostram as estatísticas de consumo de água e geração de resíduos sólidos.
Com isso, no verão a Emasa tem que fornecer água a cerca de 500 mil pessoas, incluindo a vizinha Camboriú que não possui captação. É uma situação de forte sazonalidade, que exige elevados investimentos numa estrutura que fica ociosa parte do ano.
Embora nunca tenha faltado água no “valente” Rio Camboriú, para suprir as duas cidades os estudos apontam a necessidade de ampliar a reservação, o que pode ser feito através de lagoas, mas o alto custo das desapropriações em Camboriú tem impedido a ideia de ir adiante.
Nesta semana, quando a reportagem do Página 3 visitou a central de monitoramento da Emasa, constatou que estavam sendo distribuídos 723,8 litros por segundo de água tratada, no meio da tarde de um dia de semana.
Cerca de uma década atrás, 1.000 litros por segundo suportavam a demanda nos períodos de maior consumo, as viradas de ano.
Em algum momento, motivados por escassez e pressão popular, os prefeitos de Camboriú e Balneário Camboriú terão que encontrar uma solução para o estoque de água bruta.
Hoje Balneário Camboriú, em caso de necessidade, paga aos arrozeiros de Camboriú para não desviarem água às suas lavouras, providência que se revelou salvadora em pelo menos uma ocasião.
Atualmente a Emasa tem corpo técnico próprio e a maioria das suas atividades terceirizadas, um dos modelos possíveis para serviços de saneamento.
“Nós criamos a Emasa por força da necessidade, não havia condição da cidade crescer sem saneamento, e a estatal não investia o que precisávamos. Olhando em retrospecto, vejo que foi uma decisão acertada e que prosperou com os prefeitos que me sucederam”, comentou o ex-prefeito de Balneário Camboriú, Rubens Spernau.
O ex-prefeito destaca que Balneário Camboriú é a cidade com metro quadrado mais valorizado do país, local de desejo para moradia e turismo, possui alta qualidade de vida e nada disso seria possível sem um serviço eficaz de água e esgoto.
Penha – mudança da história da cidade pode começar em janeiro
Cobertura de esgoto – 0% – Cobertura de água – 90,65%
Pontos predominantemente impróprios para banho no último verão: 7 em 11.
O município de Penha sedia o maior parque temático da América Latina, e outros empreendimentos do gênero cogitam se instalar na cidade, o que pode alavancar a economia municipal de maneira extraordinária.
Penha também possui o Centro Experimental de Tecnologia para Maricultura/CeMar-Univali, indutor da produção de mariscos no litoral catarinense, atividade importante para a população do município, seguidamente impactada pelo fato de não haver tratamento de esgoto.
A pressão da comunidade por saneamento é forte, pois dos 11 pontos onde o Instituto do Meio Ambiente coletou amostras para avaliar a qualidade de água do mar, no último verão, apenas quatro se mostram próprios para banho e os demais são predominantemente impróprios, alguns inclusive fora da temporada de verão.
Mesmo nesse cenário ruim, há motivo para comemorar porque a partir de janeiro, segundo o prefeito Aquiles José Schneider da Costa, a Aegea (que opera na cidade sob o nome Águas de Penha) iniciará investimento em torno de R$ 110 milhões em obras de saneamento, incluindo a rede de esgoto.
A Águas de Penha confirmou, através da sua assessoria de comunicação, que as as obras de esgoto começam em janeiro de 2023, com prazo até 2033 para universalizar o atendimento.
A expectativa é inaugurar, ainda no ano que vem, a primeira estação de tratamento de esgoto do município, a ETE Gravatá.
Camboriú – sofre com suas próprias decisões
Cobertura água – 94,98% – Cobertura esgoto – 0%
No ano de 2005 Camboriú, uma cidade “pobre”, não aceitou sequer discutir as condições para ser sócia de sua irmã “rica”, Balneário Camboriú, numa empresa intermunicipal de saneamento. E com isso, nos 17 anos seguintes continuou sem um metro de esgotamento sanitário.
Em 2015, a ex-prefeita Luzia Coppi Mathias cometeu o erro de conceder o sistema de água, sem vincular a compromissos para implantação do esgoto, situação que perdura até os dias atuais.
Ela alegou na ocasião que o dinheiro para o esgoto viria do governo federal, mas como era de se esperar essa verba nunca se concretizou.
O impacto do esgoto zero sobre o rio Camboriú, que deságua na praia central de Balneário Camboriú, e abastece as duas cidades, é marcante.
A degradação de Camboriú aconteceu rapidamente. A litoralização duplicou a quantidade de moradores que ocuparam e usaram o solo sem critérios ambientalmente sustentáveis.
O vereador John Lenon Teodoro, que preside a Frente Parlamentar Mista em Defesa do Saneamento Básico, lembrou que a Câmara de Vereadores, ecoando os anseios da comunidade, tem tentado motivar o prefeito Elcio Kuhnen a tomar uma decisão para a implantação do esgoto.
O titular da Secretaria de Saneamento Básico de Camboriú, José Pedro Costa, o Zé Pedro, disse ao Página 3 no último sábado que está em discussão com a concessionária Águas de Camboriú (Aegea) a repactuação do contrato de concessão, para implantar o sistema de esgoto.
“Estamos discutindo o alongamento da concessão, planilhando valores e como será o pagamento, porque a preocupação é não criar uma fatura alta que o nosso povo fique gemendo para pagar, diluir isso em 40 anos para não ter muito impacto na nossa vida”, detalhou Zé Pedro.
A expectativa é se algo vai ser feito ou, como ocorreu em ocasiões anteriores, o prefeito não levará a cabo a intenção de tirar Camboriú da situação em que se encontra.
Itapema – caminhando para esgoto 100% e prevendo problemas com água
Cobertura Esgoto – 72% – Cobertura Água – 100%
Pontos predominantemente impróprios para banho no último verão 6 em 9.
Com a economia baseada na construção civil e turismo, Itapema luta para resolver a grave ameaça da poluição por esgotos, provavelmente clandestinos, na maioria das suas praias.
A concessionária Conasa Águas de Itapema, que cuida do saneamento do município desde 2004, manifestou através da sua assessoria de comunicação que a rede atende a 85% dos moradores e que a poluição das praias decorre de falta de ligação e/ou esgotos clandestinos.
Se isso é real, a administração do município poderia aplicar um programa de identificação, lacração e multas aos proprietários com esgotos clandestinos.
A projeção da Conasa é que a universalização do esgoto demore mais duas décadas, prazo que parece excessivo em uma cidade que viu sua população fixa praticamente triplicar nos últimos 22 anos.
O abastecimento de água cobre todo o território, mas os estudos apontam a necessidade de daqui 10 anos captar água em outras bacias hidrográficas, possivelmente a do Rio Tijucas.
Porto Belo – ideia é licitar o saneamento básico no começo de 2023
Rede de esgoto – 0% – Rede de Água – 100%
Pontos predominantemente impróprios para banho no último verão: 3 em 6
O prefeito de Porto Belo, Joel Orlando Lucinda, eleito em 5 de junho deste ano em eleições suplementares, após renúncia do prefeito e do vice, disse ao Página 3 que pretende concluir até dezembro os projetos para licitar o sistema de saneamento no começo de 2023.
“Em 40 anos a Casan não fez nada, os canos de água ainda passam por dentro de Itapema, da época que aquela cidade pertencia a Porto Belo” desabafou o prefeito que foi eleito sete vezes vereador e conhece bem a história do saneamento na região.
Ele disse que não há problema de água bruta, captada na Bacia do Rio Perequê, e que em alguns momentos Porto Belo até socorre Bombinhas, que tem dificuldades com o abastecimento.
“A cidade está crescendo bastante, vamos fazer o projeto, licitar e construir a rede de esgotos” concluiu o prefeito.
É provável que a implantação do esgoto, apesar da vontade do prefeito, seja morosa porque Porto Belo tem área de 94 Km2, o dobro da extensão territorial de Balneário Camboriú, e baixa densidade populacional, são apenas 23 mil moradores fixos.
Dessa forma, o custo elevado do sistema será rateado entre poucos contribuintes, os moradores e os turistas proprietários de imóveis.
Bombinhas – natureza privilegiada e parte das praias ainda impróprias para banho
Cobertura de água: 100% – Cobertura de esgoto – 17,5%
Pontos predominantemente impróprios para banho no último verão: 5 em 9
A concessão para a Água de Bombinhas (Aegea) foi assinada pelo município em setembro de 2016, com anúncio à população que até 2021 quase a totalidade do esgoto estaria coletado e tratado.
Isso não aconteceu. No último verão, cinco dos nove pontos monitorados pelo Instituto do Meio Ambiente mostraram-se predominantemente impróprios para banho em Bombas, Bombinhas, Zimbros e Canto Grande.
Consultada pela reportagem, a concessionária informou que a previsão é concluir o esgoto em três anos, “muito antes do prazo previsto em lei, que é 2033”.
As praias de mar aberto como Mariscal, ou com pouca ocupação, não têm problema de balneabilidade, o que mantém a cidade entre as preferidas do turismo de verão.
Embora o Rio Tijucas tenha fartura de água bruta, Bombinhas viveu graves problemas de abastecimento, em decorrência de redes em más condições. Além de corrigir as adutoras e outras tubulações, a concessionária está ampliando a capacidade da estação de tratamento em 50%, para 210 litros por segundo.