Depois de longos anos, acabei de reler um dos clássicos da moderna literatura francesa. Trata-se de “O Salário do Medo” (Le Salaire de la Peur), de autoria do escritor Georges Arnaud e publicado pela extinta Difusão Europeia do Livro creio que em 1950. A obra foi traduzida por Manuel Mendes, tradutor português, de sorte que o texto contém numerosas expressões e palavras desusadas por aqui, dando-lhe um ar estranho. A leitura revela o quanto a língua falada em Portugal e aqui se distanciou.
O romance é fascinante e obteve imensa acolhida em todo o mundo na época de sua publicação, inclusive no Brasil. Ambientada na Guatemala, a história começa descrevendo um ambiente de miséria, jogatina, violência, prostituição e vício na cidade de Las Piedras, localidade fictícia, uma vez que, segundo o autor, a Guatemala não existe. A região, como de resto o país, é dominada pelas gigantes internacionais da exploração do petróleo e ali uma delas tem seu posto. Na cidade se reúne uma fauna humana das mais exóticas e heterogêneas que se possa imaginar. Ali estão foragidos da justiça, deportados de outros países, exilados políticos e criminosos de todos os naipes e nacionalidades. Existem italianos, gregos, espanhóis, franceses e outros tantos. Todos se encontram na miséria ou à beira dela e em busca de alguma forma de obter dinheiro para deixarem aquele exílio. É um mundo de tropical tramps (vagabundos tropicais).
Corre então a notícia de que um poço de petróleo explodiu e está em chamas numa vila da petrolífera que opera na região, distante cerca de quinhentos quilômetros. A cada hora que passa é consumida pelo fogo enorme quantidade do ouro negro, implicando em vultoso prejuízo. Cumpre extinguir o incêndio o quanto antes. Para isso é necessária grande quantidade de nitroglicerina, material explosivo ao extremo e que só pode ser transportado com imenso cuidado. Qualquer solavanco pode provocar uma explosão catastrófica. Mas, à falta de outro recurso, é imperativo levar o insidioso líquido em caminhões-pipas, trafegando por estradas carroçáveis e correndo todos os riscos. A companhia abre inscrições para selecionar motoristas com experiência para o risco assalariado. Escolhidos os mais competentes e corajosos, são preparados os caminhões KB 7 International, pintados de vermelho e equipados para a longa e perigosa jornada. (Numerosos desses veículos vieram para o Brasil).
A viagem tem início. Jogo arriscado, vencer ou morrer. A remuneração é boa, permitiria a libertação daquele meio infernal. É necessário viajar à noite, evitando o calor tropical, e conduzir com extrema paciência por caminhos esburacados e repletos de obstáculos. Dois caminhões partem na mesma noite com um intervalo entre eles. No primeiro vão o italiano Luigi, dirigindo, e um espanhol como ajudante; no segundo o francês Gérard é o condutor e o ajudante um grego. Partem com extremos de cuidado, mas, apesar de tudo, é indispensável atingir boa velocidade para aliviar os solavancos. Tudo corre bem até que um clarão esbranquiçado ilumina a noite: explode o primeiro caminhão. Luigi e seu colega têm morte instantânea e, para completar, a explosão provoca enorme fossa no leito da estrada. Com mil manobras, o francês consegue ultrapassar, mas o ajudante se fere com gravidade. Gérard dirige sem parar e de forma maquinal. Exausto, esgotado, apavorado. Tem visões, alucinações, sonhos absurdos. O grego, ao seu lado, geme e depois silencia. E assim vai vencendo a distância, curva a curva, metro a metro, e acaba chegando ileso ao destino. A claridade do campo aos poucos ilumina o terreno à sua frente. Uma voz forte grita e penetra aguda pela janela:
– Bravo, rapaz! Chegaste. E os outros?
Gérard não acredita. Esgotado, só quer comer e dormir. Desliga-se de tudo e dorme por horas a fio. Acordando, sabe da morte do seu ajudante a cujo sepultamento não compareceu. Enquanto dorme, descarregam, lavam e preparam seu KB 7 para o retorno. Ele próprio se livra da sujeira. É um herói. Tem no bolso o papel que vale dois mil dólares e lhe permitirá retornar a França, levando consigo a amada que o espera. Ganha a estrada, feliz, alegre, satisfeito consigo mesmo. O caminhão vermelho brilha ao sol e come as distâncias com elegância. Mas, a certa altura, exagerando na velocidade, o veículo derrapa, tomba e rola pelo despenhadeiro mais íngreme do caminho. É uma cilada do destino impedindo que Gérard volte à terra natal. Como diz o autor, tal é a poesia do risco assalariado. Uma poesia amarga.
O livro inspirou o célebre filme homônimo dirigido por Clouzod e mereceu incontáveis resenhas na imprensa mundial.
Em meados do século passado, quando o nacionalismo estava em alta, o enredo doo livro de Arnaud era apontado como exemplo do que acontece com países que entregam seu petróleo aos grupos internacionais e por isso foi objeto do ódio dos entreguistas.