Os Incas são – de longe – o grupo cultural de maior reconhecimento popular entre todos os demais que compõem as centenas de senhorios pré-colombianos da América do Sul. Ao longo de um período bastante curto, cerca de 120 anos, ergueram uma civilização complexa, com arquitetura monumental, uma rede de caminhos que perfaz milhares de quilômetros e uma série de rituais específicos que tornaram a já complexa cosmovisão andina em algo institucionalizado.
Contudo, engana-se aquele que pensa que os incas construíram um império sozinhos, como se todas as ideias e inovações estruturais tivessem surgido da noite para o dia. Antes deles tornarem-se a potência pré-colombiana que conhecemos, existiam outros grupos habitando a mesma região. Embora pouco conhecidos, esses grupos legaram um conhecimento indiscutível aos incas, preparando e moldando o terreno para a unificação andina. Um desses grupos agora é conhecido como Killke.
Os killkes tiveram seu auge entre 900 e 1.200 d.C., na região onde hoje está a cidade de Cusco, ocupando também seus vales próximos. Em outras palavras, estabeleceram os fundamentos da civilização inca. Em 2007, arqueólogos descobriram as bases de um templo nas proximidades das ruínas de Sacsayhuaman, famoso local arqueológico em Cusco. Até pouco tempo, Sacsayhuaman era vista unicamente como uma “fortaleza”. Mas a descoberta confirma que ela fazia parte de um complexo sistema conjunto de templo e fortaleza. O local agora em estudo é formado por 11 salas, além de um sistema hidráulico avançado e uma rede de caminhos. Ao redor das ruinas do antigo templo, arqueólogos encontraram uma vasta concentração de cerâmica killke.
Contudo, os killkes já eram conhecidos – embora pouco estudados – desde início do século XX. Sua cultura foi, desde os primeiros vestígios encontrados, analisada unicamente perante seu estilo cerâmico, escavado não apenas em Cusco, mas também em Pisac, Huayttampo, Qenqo, Ollantaytambo, Paruro e Salapunku, a meio caminho de Machu Picchu. Entre os arqueólogos que evidenciaram a cultura killke, estão Max Uhle, John Rowe, Jorge C. Muelle e Edward Dryer. Com a datação obtida por suas descobertas, podemos afirmar que eles viveram entre a queda dos impérios Wari/Tiwanaku e a expansão Inca.
A cerâmica encontrada, em estilo rústico, foi moldada com uma massa porosa e ornamentada com desenhos geométricos, linhas cruzadas e faixas. A cor preta predomina, embora alguns exemplares apresentem também branco e vermelho. As formas incluem taças e jarros em formatos globulares contendo alças; estes últimos as vezes apresentando rostos humanos. Alguns autores (Rowe, Bonavia, Kauffman) apontam a cerâmica killke como contemporânea ao período conhecido como “Inca Inicial” ou “Inca Lendário”, referente aos oito primeiros incas anteriores ao Sapa Inca Pachacutec.
Em 2016, o arqueólogo Francisco Huarcaya anunciou a descoberta de vestígios da cultura killke que incluem huacas (locais sagrados), pinturas rupestres, contextos funerários e fundamentos de construções. Eles foram localizados no km 88 da linha férrea entre Cusco e Machu Picchu, na margem do rio Vilcanota. No local é possível observar muros de contenção da montanha, plataformas para plantio e canais de irrigação. Na mesma montanha, abrigos apresentam pinturas rupestres – serpentes, sapos, raposas, linhas representando água em movimento – que expressam a ideologia andina de culto a água, fortalecimento de grupos e fertilidade de rebanhos.
Aos poucos, novas evidências vão surgindo e nos mostrando que os incas não ocuparam o território de Cusco num cenário de isolamento. Outros povos os antecederam, deixando vestígios, caminhos, ideias e estruturas que foram aproveitadas como pilar do que viria a ser o maior império pré-colombiano das Américas.
Dalton Delfini Maziero é historiador, escritor, especialista em arqueologia e editor da revista Gilgamesh. Pesquisador dos povos pré-colombianos e história da pirataria marítima. Visite a página: (https://www.revistagilgamesh.com.br)