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Enéas Athanázio
Enéas Athanázio
Promotor de Justiça (aposentado), advogado e escritor. Tem 60 livros publicados em variados gêneros literários. É detentor de vários prêmios e pertence a diversas entidades culturais. Assina colunas no Jornal Página 3, na revista Blumenau em Cadernos e no site Coojornal - Revista Rio Total.
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A corte celestial

Escorraçada do Caldeirão, a pobre gente do beato José Lourenço que conseguiu sobreviver teve que procurar outro canto onde morar e rezar. Ela não admitia ser escravizada; pretendia o trabalho livre e com dignidade, mesmo nas condições mais duras. Por isso, boa parte daquele povo marchou em direção ao sul da Bahia, estabelecendo-se num lugar que tem o nome de árvore, – Pau-de-Colher, – árvore boa para entalhes e artesanatos. Não tardou que a irmandade se organizasse, tivesse início a produção e colhesse os frutos de um progresso obtido pelo trabalho árduo, em terra seca e árida. Tanto bastou para que surgissem falatórios invejosos. Tratava-se de “reduto comunista”, que não podia ser tolerado, mesmo que vivesse à parte, sem incomodar a ninguém, mourejando no cabo da enxada e rezando seus benditos.

Pressionado pelos donos de terras e políticos a eles ligados, o pesado aparelho estatal começa a se movimentar. Beatos e cangaceiros, aos olhos deles, naquela altura, eram a mesma coisa.  Para comandar a repressão é designado o capitão Epicteto, que o povo teima em chamar de Pitato, antigo chefe das “volantes” que combatiam os cangaceiros. Homem fanático, tão ou mais fanático que os sertanejos, adeptos de um misticismo rústico e fundamentalista, o capitão “tem atitudes que são a resposta a um código ao qual se liga pertinaz e incondicionalmente” e está disposto a “acabar com bala tudo o que é considerado nocivo ao establishment”, cuja ordem se resumia nestas palavras: “Não quero levar prisioneiro comigo!” – para repetir as palavras de Janilto Andrade, no excelente prefácio ao livro.

Municiada com o que havia de melhor, armada até os dentes e sedenta de vitórias e honrarias, a tropa fecha o cerco férreo em torno do arraial miserável. Tem início o ataque feroz das armas automáticas contra os cacetes de quinas vivas, fabricados pelos próprios sertanejos, por isso alcunhados de “caceteiros.” A luta é bárbara, desesperada, impiedosa, mas acaba no previsível genocídio de sempre. “As primeiras descargas de balas invadem o arraial, derrubando, um a um, os homens que correm de cacetes na mão em direção à tropa invasora. E o assalto final dura pouco, porque os melhores defensores de Pau-de-Colher caíram mortos, um a um, até o último homem.” O capitão se cobre de glória, o latifúndio respira em paz, o chão duro bebe o sangue dos miseráveis e o pó do esquecimento recai sobre os fatos e os nomes das vítimas. É mais um episódio da triste e secular luta do povo por um naco de terra num país tão vasto e com tantos espaços de sobra.

Esse, em largas pinceladas, o tema do absorvente romance “A Corte Celestial”, de Cláudio Aguiar, publicado pela Fundação de Cultura da Cidade do Recife (1996) e ganhador do Prêmio Lucilo Varejão. Bem escrito, baseado em fatos reais no essencial, é um documento sociológico que complementa “Caldeirão”, comentado por mim em outra oportunidade. Com os dois romances, o autor se consagrou como o grande cronista dos adeptos do beato José Lourenço, episódio nem sempre conhecido e que, como tantos outros movimentos messiânicos, acabou em violência, sofrimento e sangue.

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