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A DEGOLA

Enéas Athanázio
Enéas Athanázio
Promotor de Justiça (aposentado), advogado e escritor. Tem 60 livros publicados em variados gêneros literários. É detentor de vários prêmios e pertence a diversas entidades culturais. Assina colunas no Jornal Página 3, na revista Blumenau em Cadernos e no site Coojornal - Revista Rio Total.
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“…mas é bicho mau, o homem!”
(Simões Lopes Neto)

Nos meus tempos de advogado em São Simão, assuntos da profissão me levaram até um frigorífico instalado em distante cidade de nosso interior. Estabelecimento pequeno, ainda usava métodos rudimentares, mas gozava de renome na região e tinha considerável produção.

O gerente me aguardava no portão e caminhei com ele por uma calçadinha lateral que levava aos fundos do prédio pintado de um vermelho fosco. Numa espécie de telheiro tinha lugar o início do processo de produção e enquanto conversava com o homem sobre as razões de minha visita fui observando o que lá acontecia.

Suspenso do teto havia um largo anel de metal brilhante que me pareceu de aço. Dele pendiam cerca de vinte dispositivos que semelhavam grandes funis com os tubos ou bicos voltados para o chão. Em cada um deles estava sendo colocado um frango vivo, ainda novo, com as cristas nascentes muito vermelhas. As pernas ficavam voltadas para cima e os pescoços e cabeças surgiam por baixo, através dos bicos dos funis, de forma que os corpos ficavam entalados e sem movimento. Os pescoços e cabeças pendentes, movendo-se em todas as direções, constituíam um espetáculo estranho. O conjunto lembrava um carrossel com as figuras vivas e voltadas para baixo, sem luzes e sem música. Ficava a impressão de que as pobres aves buscavam uma explicação para tão insólita postura.

Acionada uma chave, o anel metálico começava a rodar em razoável velocidade. Surgia, então, uma espécie de navalha de lâmina larga e afiadíssima que ia decepando aqueles pescoços, um a um, com extrema rapidez e eficiência. A surpresa impedia qualquer pio, quando muito algum grugulejo sanguinolento. Com o impacto, os pescoços decepados saltavam para um piso ladrilhado de branco, muitos deles ainda se contorcendo nos estertores da morte. As cabecinhas saltitantes, com suas cristas vermelhas e olhos esbugalhados ainda pareciam vivas, indagando perplexas o que havia acontecido e sem perceber que estavam irremediavelmente mortas.

Munido de uma espécie de rodo, um garoto empurrava com absoluta frieza aqueles restos fúnebres para uma valetinha cuja água corrente os conduzia a um imenso tacho. Nele, com outros ingredientes, se transformariam em grosseiro sabão de barras.

Enquanto isso, o círculo metálico fazia uma parada, esperando que o sangue das aves sem cabeça vertesse para o solo e dali, através de um cano, escorresse para outro local onde, com certeza, seria aproveitado. Depois voltava à posição anterior. Mãos ágeis e experientes retiravam dali os cadáveres ainda quentes e talvez pulsantes e os levavam para um compartimento vizinho. Apanhados num cercadinho próximo, outros frangos vivos tomavam o lugar dos mortos e os pescoços não tardavam a surgir por baixo dos grotescos funis. E então tudo recomeçava.

Não consegui acompanhar a segunda rodada. Com uma bola no estômago, os olhos turvos, afastei-me pela calçadinha lateral. Todo o sangue deve ter fugido de minhas faces porque tanto o gerente como os funcionários me fitavam com olhares irônicos. Chegando ao portão, contemplei os morros verdejantes que cercavam a cidade e mirei o céu azul sem nuvem. Respirei fundo e embarquei no carro, deixando inconcluso o assunto a ser tratado.

Durante largo tempo não consegui ingerir carne de frango ou de qualquer ave.

Aquelas cabecinhas saltitantes, com seus olhos perplexos, ainda hoje me assombram.

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