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Enéas Athanázio
Enéas Athanázio
Promotor de Justiça (aposentado), advogado e escritor. Tem 60 livros publicados em variados gêneros literários. É detentor de vários prêmios e pertence a diversas entidades culturais. Assina colunas no Jornal Página 3, na revista Blumenau em Cadernos e no site Coojornal - Revista Rio Total.
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A derrota de Maigret

Em admirável esforço editorial, a L&PM Editores, de Porto Alegre, vem procurando colocar ao alcance dos leitores brasileiros obras inéditas em português de Georges Simenon (1903/1989).

Entre seus lançamentos está “Maigret e o mendigo”, em tradução de Myriam Campello, publicado em 2010. É mais um dos numerosos romances cujo personagem central é o célebre Jules Maigret, Comissário da Polícia Judiciária francesa, e um dos maiores detetives da ficção universal, ao lado de Sherlock Holmes, Hércule Poirot, Auguste Dupin e raros outros. Aqui o investigador busca descobrir os autores da tentativa de homicídio de um mendigo que vivia sob uma das tantas pontes sobre o Sena, em Paris, e descobre fatos surpreendentes, tão bem encadeados como só mesmo a poderosa imaginação de Simenon conseguiria tramar.

Apesar de todo seu esforço, porém, exercitando a conhecida “intuição” que lhe permite mais adivinhar que desvendar, Maigret chega ao criminoso mas nada pode fazer contra ele, nem ao menos prendê-lo, porque ele nega com veemência e a própria vítima se recusa a incriminá-lo. É uma trama muito bem urdida, repleta de pequenos incidentes e minúcias, da qual o Comissário sai derrotado, como raras vezes aconteceu em sua longa carreira.

   Grande estudioso de Criminologia e Medicina Legal, Simenon vai semeando no texto curiosas observações, derivadas de suas leituras a respeito, e assim enriquecendo sua ficção. “Sabia por experiência própria – cogita o Comissário – que os mendigos não se roubam mutuamente. Aliás, é raro que roubem alguém, não só porque sem dúvida seriam  logo localizados, mas também  por uma espécie de indiferença” (p. 32). Necessitando de elementos a respeito de um mendigo, é informado de que “ninguém fala disso, a não ser que esteja completamente de porre” (idem). Mendigos, conclui ele, costumam ser muito discretos e solidários entre si. “Entre esse pessoal há mais solidariedade do que entre os que vivem normalmente, em casas. Tenho certeza de que neste momento eles questionam uns aos outros, vão fazendo sua investigaçãozinha paralela à minha” (p. 99). “Os mendigos não gostam muito de se meter na vida dos outros. Eles não veem o mundo como nós e têm sua própria ideia de justiça “ (p. 134).

Em outra passagem, necessitando de uma autorização legal, Maigret determina que o jovem Inspetor Lapointe vá buscá-la. Ele objeta que, sem dúvida, criariam dificuldades. “Certamente vão mandá-lo de sala em sala – observa o Comissário – e criarão obstáculos em nome de vários regulamentos administrativos. É melhor você arranjar uma carta que os impressione, com o máximo de carimbos possível. E assinada por quem? – indaga o Inspetor. Assine você mesmo. Para eles são só os carimbos que contam. . .- retruca Maigret” (p. 50). Sem dúvida uma eloquente lição de como lidar com a burocracia.

Como em toda sua obra, Simenon é impiedoso com as chamadas convenções sociais e não perde oportunidade de fazer observações contundentes através de seus personagens. Falando sobre a própria mãe, senhora rica e pertencente à alta sociedade parisiense, a personagem afirma: “Só que com ela (a mãe) é difícil separar o que é verdade do que é mais ou menos verdade. . . Ela não mente, mas arruma a verdade para que esta pareça com o que ela gostaria que fosse” (p. 60). Como tanta gente, a mãe sem dúvida vivia preocupada com a opinião pública, com o que os outros pensariam, com o que diriam dela e outras inquietações dessa ordem.

Mais adiante, Maigret faz uma observação curiosa. “Pelo menos em oito entre dez crimes a vítima compartilha em grande parte a responsabilidade do assassino…” (p. 77). Isso aconteceria, segundo ele, nos casos que são precedidos de discussão e nos quais a vítima assume uma postura de desafio: “Você não ousaria. . . não é capaz disso. . .” (idem). Verdade ou não, é uma teoria interessante, sustentada por criminologistas americanos.

Para concluir, uma observação de Maigret que os tempos desmentiram. Diz ele ao juiz de instrução: “Não se matam pobres-diabos. . . Também não se matam mendigos. . .” (p. 101). Hoje não apenas se matam mendigos como são mortos em série, segundo tem noticiado a imprensa.

 O livro de Simenon, agora em português, não é apenas um mergulho no insólito mundo da mendicância mas também na própria alma humana.

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