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Enéas Athanázio
Enéas Athanázio
Promotor de Justiça (aposentado), advogado e escritor. Tem 60 livros publicados em variados gêneros literários. É detentor de vários prêmios e pertence a diversas entidades culturais. Assina colunas no Jornal Página 3, na revista Blumenau em Cadernos e no site Coojornal - Revista Rio Total.
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A Festa do Bode

Diz um leitor que fui muito duro em relação às ditaduras em meu comentário sobre o livro “A Festa do Bode”, do escritor peruano Mario Vargas Llosa (Editora Mandarim – S. Paulo – 2000). Segundo ele, em certas circunstâncias as ditaduras seriam necessárias para evitar o caos e colocar ordem na casa. Lamento discordar, mas as ditaduras jamais são necessárias e todas elas deixam terríveis marcas na história dos povos. Com o apego dos homens ao poder e na luta pela própria sobrevivência, todas elas, a partir de certo momento, passam a cometer as maiores arbitrariedades contra o povo indefeso. Os exemplos são numerosos, conhecidos de todos, e por isso me dispenso de enumerá-los.

Em “A Festa do Bode” Vargas Llosa romanceia um período da ditadura implantada por Rafael Leônidas Trujillo Molina na República Dominicana, uma das mais sangrentas e longas de quantas existiram na América Latina e que perdurou por 31 anos até que o ditador fosse assassinado numa emboscada. Embora seja um romance, obra de ficção, o relato se desenvolve dentro de marcos históricos e com base em fatos verídicos, comprovados por vasta e criteriosa documentação. Mesmo que personagens reais e fictícios se cruzem e entrecruzem ao longo da história, os fatos básicos são reais e hoje do conhecimento público. Além disso, o romance é eivado de sinceridade, ao passo que documentos oficiais, ainda mais produzidos em períodos obscuros, costumam ser tendenciosos.

Como os ditadores em geral, Trujillo, homem sagaz e pragmático, tratou de cooptar as inteligências do país em troca de cargos, benesses e vantagens. Foi o que aconteceu, por exemplo, com Don Agustín Cabral, conhecido como Cerebrozinho, senador e presidente do Senado. Esse homem dedicou grande parte de sua vida a serviço do Chefe e, não obstante, por razões desconhecidas, caiu em desgraça. Tiraram-lhe os cargos, afastaram-no de tudo, congelaram suas contas bancárias e confiscaram suas propriedades. Tudo sem que ele soubesse a razão, tal como o personagem de Kafka que foi processado, condenado e executado sem que lhe informassem o motivo. Suas cartas não mereciam resposta, suas solicitações de audiências eram ignoradas, os pedidos de explicação, feitos através de intermediários, não encontravam eco. Até que, num ato de extrema baixeza, ofereceu ao ditador sua própria filha, menina linda de apenas 14 anos de idade, para que servisse à conhecida luxúria do velho Bode. Ainda que a festa, preparada com minúcias pelos cortesãos, não acontecesse como o previsto, deixou marcas profundas e irrecuperáveis na pobre menina. É ela própria, Urânia, que vem a revelar esses fatos torpes trinta e tantos anos mais tarde, quando o pai, paralítico, jazia numa cadeira de rodas e toda a família se encontrava à beira da miséria. Ela jamais superou o trauma, nunca conseguiu casar e constituir família, fugindo sempre de qualquer aproximação masculina. Esse é apenas um dos numerosos episódios aberrantes que aconteciam no mundo oficial em que vivia o ditador, cercado por serviçais e bajuladores. Enquanto isso, seus filhos Râmfis, Radhamés e Angelita perambulavam pelo mundo gastando a rodo e praticando toda sorte de maluquices custeadas pelo sofrido povo dominicano.

Militante de esquerda na juventude, Vargas Llosa se deslocou para o centro e disputou a presidência do Peru, seu país natal, perdendo a eleição para o trânsfuga Alberto Fujimori, num resultado que consternou o mundo. Processado por toda sorte de desmandos, Fujimori se encontra preso ou, pelo menos, foi a última notícia que li a respeito dele. Llosa recebeu o Prêmio Nobel de Literatura e “A Festa do Bode” é um dos seus mais festejados romances.

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