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Enéas Athanázio
Enéas Athanázio
Promotor de Justiça (aposentado), advogado e escritor. Tem 60 livros publicados em variados gêneros literários. É detentor de vários prêmios e pertence a diversas entidades culturais. Assina colunas no Jornal Página 3, na revista Blumenau em Cadernos e no site Coojornal - Revista Rio Total.
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A GRANDE AVENTURA

Passei alguns dias mergulhado nos “Diários Índios”, de Darcy Ribeiro (Cia. das Letras – S. Paulo – 1996 – 600 págs.), livro que li com cuidado há uns dois anos e sobre o qual escrevi dois ensaios, ambos já publicados. Escrito em forma de diário, como longa carta enviada à esposa, Berta, que ela só leria depois de publicada, é recheado de fatos, mapas, desenhos e fotografias, tornando a leitura agradável, apesar do tamanho. É um dos livros menos conhecidos e comentados do autor de “O Povo Brasileiro.”

Nele o autor narra as duas expedições que realizou ao território dos índios urubus-kaapor, visitando suas aldeias, uma por uma, espalhadas no mais profundo da selva amazônica no Pará o no Maranhão. A primeira partiu de Vizeu, na foz do rio Gurupi, ou seja, do norte para o sul. A segunda teve trajeto oposto, partindo do rio Pindaré para o norte. Chegou a permanecer por dez meses na região, longe de tudo, isolado do mundo, dormindo em ranchos improvisados ou ao relento, comendo mal e sofrendo o assédio dos mosquitos e outros insetos. Venceu correntes de rios pouco conhecidos em batelões velhos e precários, cruzando corredeiras perigosas, tendo às vezes que andar dentro da água, mergulhado até a cintura, para empurrar o barco. Fez caminhadas que chegaram aos mil quilômetros, dentro da selva, cruzando picadas abertas a golpes de foice e machado, ou em caminhos abertos pelos índios, cruzando igarapés, furos e igapós desconhecidos. Muitas vezes molhado até a alma, sem enxergar um palmo de céu, encoberto pela mataria verdejante, percorreu regiões nunca pisadas por brancos, das quais inexistiam mapas e informações seguras.

Nunca se desgarrava da caderneta de campo, tudo anotando, mapeando e desenhando. Mais tarde passava para cadernões de capa dura, enquanto ainda fresco na memória, procurando manter a maior fidelidade. É admirável que tenha feito uma obra literária, escrevendo em condições tão precárias, em cima da perna ou de algum tronco caído (os índios não usavam mesas), na semi-obscuridade ou cercado de índios que não cessavam de falar e lhe tomavam a caneta das mãos porque também desejavam fazer seus rabiscos e desenhos. Mesmo assim, em alguns momentos chega a atingir o nível da boa prosa poética. Graças ao seu esforço e à sua coragem, deixou-nos um retrato sem retoque daquela inóspita região, seus habitantes e seu modo de vida.

Com 27 anos de idade, na época, Darcy Ribeiro estava no auge da forma física e do entusiasmo intelectual. Tudo o cientista social queria ver, observar, entender e registrar. Nada de informes requentados, de segunda mão; sua meta era examinar in loco. Exercitando atilado senso de observação, nada deixava escapar e tornou seu livro um manancial único e inesgotável sobre aquela região do país. Ao lado das observações de caráter científico, emergem do texto o sentimento humano, o amor ao país, a dedicação à ciência que abraçou e a preocupação com a sorte daquele povo abandonado, já então vítima de invasores e exploradores (os regatões). Viu os primeiros efeitos do contato dos civilizados com os indígenas e alertou para as consequências futuras, aquelas que nós todos hoje conhecemos.

Além de tudo, o livro relata uma aventura única e insuperável. Não vejo como um homem de nosso tempo possa realizar aventura igual ou parecida, dentro do território nacional, sem contar com recursos tecnológicos e dispondo de tão parcos recursos. Parece-me  de  todo  impossível. 

                                                   __________________                                   Republico este artigo em homenagem a DARCY RIBEIRO (1922/1997), cujo centenário de nascimento ocorreu em 26 de outubro e provocou a realização de vários eventos. Sem dúvida, um dos maiores intelectuais brasileiros do século passado, as marcas de sala atuação ficaram na causa indígena, na educação, na criação da Universidade de Brasília (UnB) e do Memorial da América Latina. Foi uma figura a quem o Brasil muito ficou a dever, reconhecido em todo o mundo ocidental e doutor honoris causa pela Universidade de Sorbonne. Rendo a ele minhas homenagens, relembrando que ao longo da vida li, reli e tresli suas obras e sobre elas escrevi inúmeras vezes.

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