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Enéas Athanázio
Enéas Athanázio
Promotor de Justiça (aposentado), advogado e escritor. Tem 60 livros publicados em variados gêneros literários. É detentor de vários prêmios e pertence a diversas entidades culturais. Assina colunas no Jornal Página 3, na revista Blumenau em Cadernos e no site Coojornal - Revista Rio Total.
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A LUZ NO CANAL

Contratado para resolver uma questão de terrenos no litoral, Janary Messias desceu a Serra num domingo de primavera com céu muito azul e temperatura agradável. Gostou da incumbência porque fazia tempo que não via o mar e agora poderia dar bons mergulhos, tomar bastante sol estendido na areia e saborear frutos do mar. Enquanto o carrão, um dos seus orgulhos, vencia com elegância as curvas caprichosas, contemplava a beleza do panorama, com os morros elevados, o mato de um verde muito vivo e as flores brancas, azuis e amarelas que se exibiam em grande quantidade em ambas as margens da estrada. Seu destino era a cidade de Barra Fria, situada na confluência de um canal com o mar aberto e pontilhado de ilhas, maiores e menores, algumas delas habitadas.

Entrando na cidade, notou que o movimento era normal porque a temporada não havia começado. Dirigiu-se ao Miramar Hotel, seu conhecido, situado quase no triângulo da barra, fazendo frente para o canal, de um lado, e para o Atlântico de outro. Foi instalado num apartamento do segundo andar, de cujas janelas avistava o canal, a igreja e alguns prédios mais altos da cidade situada no outro lado, e o mar com as ilhas próximas. Agradou-lhe muito a posição privilegiada. Recolhido o carro, vestiu bermudas e camisa esportiva, calçou um par de sandálias que havia comprado em Aracaju e saiu pela cidade. Caminhou pela margem do canal e pela praia, conversou com alguns pescadores e jantou no Boteco do João, onde lhe serviram delicioso peixe grelhado acompanhado de chope gelado. Enquanto comia, observava a curiosidade que sua figura despertava e o próprio João, homenzarrão forte e espadaúdo, puxou conversa, ansioso por descobrir a razão de sua presença. Mas nada disse porque a experiência lhe ensinara que nas pequenas cidades a causa de um é a causa de todos e qualquer deslize poderia atrapalhar.

Após o jantar, com a noite fechada, dirigiu-se em passos vagarosos para o hotel. Não deixou de notar, com certa surpresa, a quantidade de cachorros que vagavam pelas ruas. Grandes, médios, pequenos, todos guapecas SRD. Nas redondezas do hotel perambulava um cãozinho branco com pintas vermelhas, muito ativo e ligeiro. Não dava atenção a ninguém e parecia sempre apressado, lembrando algum executivo cheio de compromissos inadiáveis. Ignorou os chamados do advogado e partiu altivo para um destino ignorado. 

Um cão preto, com aparência de velho, chamou a atenção porque tinha uma perna traseira enrolada em pano branco e presa com esparadrapos. Deveria ter se ferido e alguém realizou aquele curativo. Mas ele pouco se importava e caminhava rápido com as três patas sadias.

Outro, também preto e com uma lista branca no peito, parecia ter alma de poeta romântico que vive ladrando à lua. Caminhava um pouco, fazia uma breve parada, levantava a cabeça para o céu e ladrava, ladrava. Ficava a impressão de que não sabia porque e para quem ladrava. Um mistério!

Num pequeno beco, apertado entre duas casas, um cãozinho cinzento, muito magro e ossudo, dormia tranquilo com a cabeça encostada na parede dura. Janary o observou de perto, falou com ele, mas o dorminhoco nem sequer se dignou a abrir os olhos. 

Enquanto jantava, o advogado notou a presença de um cachorrão branco, sentado nas patas traseiras, do lado de fora, com os olhos pregados na janela. Esperava que jogassem alguma comida.     

Mais além, vagando pela escuridão, Janary avistou mais dois ou três cães correndo soltos.

Chegando ao hotel, comentou com a atendente a respeito da cachorrada, ao que ela respondeu:

– Pois é, não sei de onde vêm tantos!

Recolhido ao apartamento, repassou o plano para o dia seguinte e se entregou à leitura. Depois tratou de dormir, embalado pelo som das ondas. 

Alta madrugada, acordou e foi à janela. A noite era escura, compacta, um breu, quente e abafada. Olhou na direção do canal e teve a impressão de avistar o reluzir de uma pequena lâmpada que tentava furar a escuridão. Semelhava a luz de uma lanterna elétrica que tremia com o movimento da mão que a segurava. Fixou o olhar na tentativa de ver melhor mas ela se apagou e desapareceu. Ficou intrigado porque não havia qualquer movimento no canal e na praia da margem. Mas tratou de varrer esses pensamentos e voltou à cama.

Na manhã seguinte, depois de um saboroso café com boas frutas, Janary rumou para o fórum, agora engravatado, mesmo no calorão que se anunciava. Solícito, o escrivão não demorou a localizar o processo e Janary se acomodou com ele na sala dos advogados. Examinou os autos, fez as anotações necessárias e perambulou pelos cartórios em busca de documentos. Pelo meio-dia já dispunha dos elementos necessários. Fechado no apartamento, redigiu as petições na velha Remington portátil que o acompanhava há muitos anos e voltou ao fórum para protocolá-las. Missão cumprida, ainda lhe sobrou tempo para passar várias horas na praia, tomando sol e mergulhando nas águas verdes do mar. No dia seguinte, com muita calma, poderia retomar o caminho da Serra-Acima.

Ao anoitecer, voltou a jantar no Boteco do João, saboreando um delicioso risoto de camarão. Pelo jeito, o dono já sabia dos motivos de sua estada na cidade: as informações por lá corriam céleres.

Diante da janela, agora com um companheiro, o cachorrão branco esperava sentado nas patas traseiras e abocanhava ainda no ar os nacos de pão que lançava para ele. O outro, mais lento, ficava no desejo.

Depois de alguma leitura na sala de estar, Janary se recolheu para dormir. Arrumou as coisas para facilitar a saída, no dia seguinte, e tratou de dormir. Sentia-se um pouco cansado.

Pela madrugada, acordou e se lembrou da luz no canal. Abriu a janela e se pôs a observar. Não demorou a avistar a misteriosa lâmpada, agora um pouco mais longe, parecendo estar próxima à margem oposta. Devagar, muito devagar, ela se movia no sentido de fazer a travessia. Curioso, o advogado envergou às pressas uma camisa e bermudas e desceu para o térreo. Enveredou pelo largo espaço arenoso que existia entre o hotel e o canal. Tratou de se ocultar atrás de um barco de pesca ancorado e ficou observando aquela estranha luz, agora mais próxima. Pelo ruído que faziam, mesmo com todo cuidado, entendeu que um pequeno bote a remo se aproximava e dentro dele um dos ocupantes segurava uma lanterna elétrica. Ao chegar à margem, a luz foi apagada e a pequena embarcação ancorou com suavidade e quase sem ruído.

Do ponto onde estava, Janary acompanhava a cena. Havia dois homens a bordo, um deles manejando as vogas e outro cuidando do leme. E na parte dianteira, amarrados com cordas, quatro cachorros. Tão logo o bote tocou na areia os cães foram soltos e empurrados para fora. Não se fizeram de rogados, saltaram e se puseram a correr e farejar, livres, leves e soltos.

Sem demora, a embarcação fez a volta e o remador manejou as vogas em direção ao outro lado.

Janary entendeu, então, que a cidade vizinha vinha desovando seus cães de rua nas areias da pacata Barra Fria.

Tratava-se de uma sigilosa operação de limpeza canina.

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