- Publicidade -
25.7 C
Balneário Camboriú
Enéas Athanázio
Enéas Athanázio
Promotor de Justiça (aposentado), advogado e escritor. Tem 60 livros publicados em variados gêneros literários. É detentor de vários prêmios e pertence a diversas entidades culturais. Assina colunas no Jornal Página 3, na revista Blumenau em Cadernos e no site Coojornal - Revista Rio Total.
- Publicidade -
- Publicidade -

CALMON DE OUTRORA

Passeando pela Internet, deparei com várias imagens de Calmon com seus campos e matos cobertos de geada. O pátio da estação ferroviária e a campina diante dela, do outro lado dos trilhos, semelhavam um tapete branco. Imaginei o frio que deveria estar fazendo e o vento cortante chacoalhando as copas das árvores.

Isso me trouxe à memória cenas de um passado que já vai longe e que, acredito, possa ser classificado como de antanho, ou, para usar termo mais palatável, de outrora. Calmon era a sede de um dos braços da célebre Companhia Lumber, o “Colosso”, pertencente ao chamado Sindicato Farquhar. Tinha como administrador o carioca Murilo Mavignier Colin, pai de dois rapazes que foram por algum tempo meus contemporâneos de internato: Flávio Colin, que se tornaria célebre cartunista, e Renato, o Natão, ambos mais velhos que eu.  

Como meu padrasto fosse funcionário da Companhia, muitas férias do colégio passei em Calmon gozando de uma liberdade absoluta. Perambulei muito pela região, no início montado num cavalinho baio chamado Luar de Prata, presente de minha mãe, depois numa bicicleta Horimek, de fabricação sueca, e até mesmo a pé porque sempre fui tomado de ímpeto deambulatório. Existia ainda uma charrete, tirada por um cavalo Gateado, que eu às vezes utilizava. Seria injustiça esquecer Rosilho, cavalo muito velho que vivia ao deus-dará e que eu também montava em algumas aventuras. No início das férias, tão logo chegava, eu conseguia algum dinheiro com minha mãe e comprava um fardo de alfafa e um saco de milho. Luar de Prata e Rosilho passavam bem. 

Lembro-me de que fui de bicicleta até Matos Costa e retornei no mesmo dia, proeza em que meu padrasto nunca acreditou. A estrada abandonada havia desaparecido e tive que pedalar pelos carreadores feitos pelo rascar das patas dos animais, abrindo porteiras, patinhando em banhadais e espantando gado meio alçado que encontrava pelo caminho. Na passagem, visitei meu amigo Germano, telegrafista da estação de General Dutra, situada nos campos de São Roque, a mais isolada da região. Ele e um mecânico de Matos Costa também duvidaram da minha solitária excursão. Não me ocorreu levar uma prova da aventura, embora tivesse almoçado na casa de meu colega Pedrinho Malanski que poderia testemunhar.

Em Calmon um grupo de rapazes se reunia para andanças e conversas. Entre eles estavam Zeca Bariulka, Nino Rosendo, Henrique Loretto, Raul Paraná, Ary Machinski, Elói Baby, Renato Colin e eu. Como não havia muito o que fazer, o pequeno grupo se acomodava na plataforma da estação e lá os papos se estendiam até a noite quando não fazia muito frio. A gargalhada espalhafatosa do Natão ecoava no silêncio da noite.  Os “paraguaios” Lino e Tarquino às vezes compareciam e ficavam bispando de longe, desconfiados. O primeiro deles, segundo me informaram em Porto União, se tornou maquinista da ferrovia.

A passagem dos trens de passageiros atraía muitas pessoas à estação; era o momento mais movimentado do dia. Ary foi o iniciador das caçadas de tatus. Possuía um cachorro de nome Cury e com ele entrávamos à noite pelos matos para longas caminhadas, quase sempre sem resultado. Não sei se os tatus eram muito ariscos ou se na verdade não existiam. 

Creio que todos os integrantes do grupinho já desencarnaram, de sorte que sou o único sobrevivente.

Às vezes se organizavam bailarecos na sala da escola, embora fosse complicado obter músicos, uma vez que em Calmon não existiam. Eram trazidos de Matos Costa ou de São João de Cima. Nessas ocasiões aconteciam alguns namoricos sem maior importância. Brigas eram muito raras; os calmonenses eram de boa paz.   

Calmon parecia, na época, uma clareira em meio aos pinhais. 

Em 5 de setembro de 1914 Calmon foi invadida e incendiada pelos chamados “fanáticos” durante a Guerra do Contestado. Chefiados por um menino de 16 anos, conhecido como Chiquinho Alonso, queimaram a serraria, a estação e várias casas, tendo assassinado muitas pessoas. Esses e outros acontecimentos deram à cidade o título de Epicentro do Contestado.

Na campina defronte à estação existia imenso poço cercado de pesado tapume. Nele teriam sido encontrados corpos humanos sem cabeças, vítimas dos terríveis degolas a facão. Ainda conheci esse poço e admirei suas águas viscosas. Creio que fornecia água para a serraria.

Os moradores da região se referiam ao Contestado como “Revolta dos Jagunços”, nome que me parece mais exato que Guerra do Contestado aplicado por militares e historiadores. Na verdade, o que ocorreu foi uma verdadeira revolução popular partida de baixo para cima e visando alterar pela força um status quo opressivo e injusto. Como ensinam os juristas e sociólogos, foi exemplo típico de uma revolução.

Calmon prossegue na sua vida cotidiana. A cidade cresceu, em especial para os lados da “saída” para Caçador. É município e foi dotada de muitos melhoramentos urbanos. E lá continua lutando com bravura o Grupo Resgate, liderado pelo jornalista João Batista, o JB, e seus filhos, buscando preservar a história da antiga Osman Medeiros e pesquisando na busca de novas informações. Dando cobertura a tudo, a Rádio Destaque Regional repassa as informações à população.

Muito de Calmon está nos meus escritos. Paisagens, histórias, personagens, bichos. 

Estas são breves memórias anotadas ao acaso, mas nada têm de saudosistas. Não há nada mais patético que um velho chorando pelo leite derramado.  

- Publicidade -
- Publicidade -
- Publicidade -
- Publicidade -