Janary Messias encostou o carro junto à cerca-viva que margeava o muro branco. Desceu para o lusco-fusco do anoitecer e foi envolvido pelo frio seco do inverno. O ar que saía dos pulmões de repente virou bafo, espalhando-se ao vento. Deu graças por estar bem agasalhado e ajeitou a manta de lã que trazia no pescoço. Espreguiçou-se para estirar os músculos e sorriu ao sentir que não estava cansado mesmo depois de tantas horas ao volante. “Estou um guri” – pensou. Num gesto espontâneo passou a mão na lata brilhante do veículo, assim como quem afaga um pingo de boa raça. Uma das suas vaidades eram os carrões luxuosos e brilhantes.
Foi caminhando devagar em direção ao portal quando as luzes da cidade se acenderam na baixada. As ruas e praças se desenharam em linhas iluminadas que traçaram o mapa do centro e dos bairros, alguns deles escondidos entre morros. O rio refletia nas águas calmas as luzes próximas e depois, como uma faixa escura, continuava sua caminhada cheia de curvas através dos campos. A noite se fechou e o advogado permaneceu um tempão olhando aquela cidade tão tranquila.
Rumou depois, em passos lentos, para o lugar combinado. Observou o portão de pedras e a cruz armada em cima dele e sentiu no ar um silêncio mortal. Seus pelos se arrepiaram quando olhou para dentro e viu a calmaria reinante. O medo ameaçou invadir seu coração mas ele reagiu. “Temer os vivos! Temer os vivos!” – repetiu para si mesmo. Depois escolheu uma pedra ajeitada, sentou-se, acendeu um cigarro.
Esperou na noite fria.
Ruído de passos solitários ecoou no ladrilho da calçadinha que ia para o fundo. Era o pisar firme e decidido, com os tacões batendo forte, que ele conhecia tão bem. Notou que as mãos tremiam de leve e os cabelos queriam empinar-se quando o outro cruzou o portão e veio na sua direção. Acalmou-se ao ver que era o compadre Nagib em carne e osso, tal como o vira pela última vez, há mais de dez anos. Levantou-se.
Nagib veio de mão estendida e embora o aperto fosse enérgico como antes teve a sensação estranha de uma certa rigidez.
– Mas báh! compadre velho! – foi ele dizendo naquele vozeirão familiar. – Até que um dia a gente se vê…
Era evidente o prazer que sentia e Janary emocionado fitava o amigo querido de quem estava cheio de saudade. Eram os mesmos olhos de turco, negros e brilhantes; eram os mesmos cabelos pretos e lisos penteados no capricho; eram os mesmos gestos e a mesma postura. Não houve mudança alguma naqueles anos, nem uma ruga, nem um cabelo branco. O tempo não tinha passado para ele. Parecia apenas, naquela luz fraca do portão, um pouco pálido, de uma palidez diferente.
A conversa explodiu. Era muito o que tinham a dizer e ali ficaram bastante tempo enquanto a noite fria avançava.
– Diga lá, compadre velho – largou de repente o Nagib – por que demorou tanto a vir?
Apanhado de surpresa, o advogado desconversou:
– Não entendia os recados – disse ele sem convicção.
– Não entendia ou não acreditava? – e o turco largou no ar um riso safado que era só dele. – Se eu não começasse a contar umas histórias secretas da sua vida você não vinha nunca…
Riu de novo, gozando a atrapalhação do outro. Janary reconhecia no íntimo aquela verdade: se não fossem certos pormenores ele não acreditaria. E não teria vindo.
Sentaram-se lado a lado na pedra e ficaram olhando a cidade em silêncio. O advogado notou que as roupas do compadre estavam meio fora de moda, as calças eram largas e tinham bainha, a camisa de colarinho pontudo.
Foi o Nagib quem quebrou o silêncio.
– Como a cidade aumentou! Aquele bairro para a direita acho que nem existia. E a água do rio parece suja.
– É a poluição.
– Poluição? Acho que nem se usava essa palavra. Não me lembro. – Fez uma pausa. – Também não tem mais pinheiro. A cidade ficava no meio deles. Tiraram todos! – exclamou incrédulo. – Até os palitos que não prestavam para nada.
Silenciaram de novo, olhando, olhando-se. Janary não conteve a curiosidade e largou a pergunta que lhe atravessava a garganta:
– Como você fez para sair de lá?
O compadre tardou na resposta.
– Apliquei a velha lábia – fez um meio sorriso irônico. – Eles acreditam na amizade e eu falei que a nossa vem da infância. Deixaram.
– Eles, quem? – quis saber o advogado.
Meio espantado com tanta curiosidade e revelando na voz algum temor, ele respondeu seco:
– Eles, ora. Quem mais poderia ser?
Messias percebeu que o assunto não agradava. Acendeu um cigarro e sugou com prazer. Via com o canto dos olhos que o compadre o examinava.
– Compadre velho – disse por fim o amigo – não me leve a mal, mas você envelheceu nestes anos. E seus cabelos rarearam, a melena quase sumiu! Mas garanto que ainda é doente por um rabo-de-saia – e riu com vontade, os dentes rebrilhando na tez macilenta.
A observação atingiu Janary como um soco. Para ele, que se julgava de aparência jovem e que todos diziam conservado, a dureza daquela opinião foi terrível. Comparando-se, porém, com o amigo não podia negar a verdade daquelas palavras. Passou a mão pelo rosto e o desalento cedeu lugar à alegria diante do argumento que lhe brotou lá no fundo: “Mas eu estou vivo! Mas eu estou vivo!”
Sentiu no joelho a mão do amigo.
– Compadre, a noite é jovem. Vamos para a cidade?
Levou um choque. Como iriam para a cidade? O turco seria sem dúvida reconhecido, era cria daquela terra, ali nascido e criado. Mas ele já se levantava e não tinha jeito de negar. Levantou-se também e rumaram para o carro. Lá chegando, o compadre estranhou o veículo e ficou a observá-lo daqui e dali.
– Não conheço esse carro – disse. – Parece coisa nova, no meu tempo não havia.
O advogado concordou. Não havia.
Embarcaram. Janary ligou o condicionador e colocou no toca-fitas uma das músicas prediletas de Nagib. Os acordes encheram o interior aquecido e ele exclamou:
– Bueno! Bueno!
Ouviu mais um pouco, recostou-se no assento macio.
– Bicharia! – exclamou.
O advogado manobrou o carro para o asfalto e iniciou lenta descida no rumo da cidade.
Em pouco percorria vagarosamente as ruas do centro. O compadre não se continha em exclamações que iam da surpresa ao espanto. Uma casa muito familiar que fora substituída por um prédio, uma nova praça ou a fisionomia envelhecida de algum conhecido, tudo provocava seus comentários onde havia uma nota de perplexidade. Por diversas vezes Janary teve que parar aqui ou ali para que o amigo observasse algum detalhe.
Rumaram para a zona boêmia da cidade. Era o mesmo caminho que ambos, em tempos idos, tinham percorrido tantas vezes. Com a diferença de que agora as ruas estavam asfaltadas e iluminadas, enquanto que naqueles dias da juventude só havia pó e escuridão.
Encostaram o carro e desceram a pé, caminhando lado a lado pela rua central. Das casas vizinhas escoavam-se músicas estridentes numa mistura caótica de sons desconexos. Nagib, mesmo apurando o ouvido, não conseguia identificar nada que lembrasse suas músicas preferidas.
Na rua, em trajes que julgava bizarros, homens e mulheres perambulavam. Ansioso por encontrar algum conhecido, o compadre examinava os que passavam. Ninguém mais o conhecia. Eram dois estranhos, ele pela longa ausência, Janary porque residia em outra cidade.
Entraram numa boate e se colocaram discretos na mesa do canto. Janary notou naquele ambiente de luz negra a extrema palidez de seu companheiro. Mas ele, de fisionomia serena, sorvia com prazer a cerveja.
– Agora ela vem gelada – comentou. – Não é choca como naqueles tempos. – Riu meio sem graça.
Ali ficaram por muito tempo, olhando os pares que dançavam. Nagib de repente começou a levantar-se, o rosto refletindo a alegria de avistar um conhecido.
– O Maneca! Olha só o Maneca!
O outro, ouvindo seu nome, deu uns passos em direção à mesa. Mulato retaco, tinha a cara esperta e os olhos vivos de malandro velho. Abriu um sorriso largo e já estendia a mão quando reconheceu o turco. O sorriso se transformou e toda sua cara se converteu no retrato do espanto. Pareceu estacionado no ar, imóvel por um momento. Os olhos vagavam rápidos de Janary para Nagib e deste para aquele, como que implorando uma explicação. Depois fez meia volta e sumiu no meio dos dançarinos.
Surpreso, Nagib voltou a sentar. Era a própria tristeza. Janary procurou animá-lo e lembrar as malandragens do Maneca. Ele na certa tinha se lembrado de alguma facada antiga. O turco pareceu reanimado.
A noite ia alta e Janary sentia a friagem atacando seus pés e suas mãos. Enquanto isso o compadre, parecendo imune, bebia deliciado a cerveja gelada e observava a boate que se esvaziava devagar. Estava entregue aos pensamentos ou às recordações e assim permaneceu até que a música cessou.
– Bueno, compadre velho! Foi uma noitada das boas mas é hora de chegar. – Não havia tristeza nas suas palavras, apenas indiferença.
Saíram para a noite e Janary notou que o compadre parecia mais pálido e enrijecido. Ou seria uma impressão?
No carro, fumaram em silêncio e subiram a coxilha até o muro branco. Caminharam em direção ao portal. O advogado sentia uma sensação estranha, misto de tristeza e pena. O outro parecia indiferente, mostrava até uma ligeira ânsia de chegar. Pararam diante do portão, banhados pela luz fraca. Lá em baixo, esmaecidas pela cerração, brilhavam as luzes da cidade silenciosa.
Janary passou o braço pelos ombros do compadre. Gesto espontâneo, impensado, que encontrou um corpo frio.
– Não gosto de despedidas – disse ele. – Mas como sei que agora nos veremos sempre, estou tranqüilo.
O outro o fitou em silêncio.
– Compadre velho, foi muito bom esse encontro, rever você e a cidade. – Pareceu constrangido. – Não devo voltar aqui. Hoje eu vi que tudo e todos têm um inimigo comum e vivem a lutar à toa contra ele. É a preocupação maior de vocês todos mas não existe remédio porque o Tempo é invencível…
Olhou para o compadre desolado, abraçou-o ligeiro, num gesto muito seu e arrematou num tom de alívio:
– Nós não temos essa preocupação.
Desvencilhou-se do outro e rumou para o portão em passos vagarosos. Quando o cruzou seus passos ecoaram firmes e decididos na calçadinha que ia para os fundos.