Portugal suportou uma das mais longas ditaduras da história. Foram 48 anos sob o jugo de um fascismo implacável que teve como inspirador Oliveira Salasar deposto em 25 de abril de 1974 graças à chamada Revolução dos Cravos. Fatos da maior importância tiveram início após o movimento revolucionário que muito influíram na existência do escritor luso José Saramago (1922/2010). Partindo daí, a professora e escritora Conceição Flores teceu excelente ensaio publicado em importante revista acadêmica com o título de “Levantado do Chão.” (*)
No ano seguinte foram realizadas as primeiras eleições livres em clima de intensa violência política, até que ocorreu a chamada “Crise de 25 de novembro”, tentativa frustrada de um golpe de Estado, e que acabou por consolidar a democracia no país. Tais acontecimentos repercutiram, na vida do escritor, conhecido militante da esquerda. Foi demitido do jornal que dirigia e, sem emprego, decidiu mudar-se para o Lavre, no Alto Alentejo, e lá escrever “uma história sobre o campo e quem lá trabalha e mal vive”
Lá instalado, tratou de conhecer a Vila, que contava com 740 habitantes, sua história e o modus vivendi do povo. Conversou com homens e mulheres, gravou entrevistas e tomou notas para o livro que seria batizado de “Levantado do Chão.” Naquela região imperava o latifúndio e até a casa onde se instalou pertencera a um latifundiário foragido em virtude da reforma agrária. Saramago estava em terreno propício para registrar seu pensamento sempre voltado à justiça social.
Foi então que lhe caiu nas mãos um caderno de João Domingos Serra, camponês da região, contendo anotações sobre a história de sua família desde 1904. Foi um achado que impulsionou a obra em execução. O “Levantado do Chão” – disse ele – começou a ser escrito nesse dia, quando contraí uma dívida que nunca poderei pagar.” O romance foi colhido da própria vida, como desejava Monteiro Lobato, e narra a história dos Mau-Tempo, camponeses sem-terra que vivem no Alentejo, região de latifúndios do sul do Tejo, como expõe a ensaísta. Registra o ror de exploração e miséria de que são vítimas os “donos de coisa nenhuma” em troca de “mísera paga.” Um relato dolorido da velha exploração do homem pelo homem.
“A zoomorfização exposta pelo narrador – anota Conceição Flores – revela o sistema de escravidão a que são submetidos os sem-terra alentejanos. Nesse sistema, o feitor é peça fundamental, “é o chicote que mete na ordem a canzoada. A desumanização gerada pela exploração e pela violência do opressor é mantida pela ausência de educação, por isso é conveniente…” Panorama encontrado em pleno Século XX na desenvolvida e sofisticada Europa. A educação despertaria o perigo da conscientização e por isso a ignorância contava com o apoio do Estado, a Guarda Nacional Republicana (GNR), “criada e sustentada para bater no povo.”
A autora prossegue na análise do romance, inclusive sob a luz de renomados pensadores e reproduz episódios de sofrimento, perseguição, prisão e miséria de pessoas sem-terra, dentre os quais membros da família de João Serra, os Maus-Tempos. Descreve as masmorras erigidas para encarcerar os democratas, a exemplo do Forte de Caxias e do Aljube, que fazia parte do chamado roteiro do terror, criados pelo autodenominado estado novo, velho praticante do imemorial terrorismo estatal.
Passo a passo, sempre lastreada em sólidas fontes, a autora aponta a decadência do salazarismo, inclusive o comentadíssimo “tombo de Salasar”, as reivindicações e protestos violentos do povo, as fugas de presos políticos do Forte de Peniche, o início das guerras coloniais na África e o surgimento de movimentos libertários, como os do general Humberto Delgado, candidato à presidência pela Oposição, e de José Adelino dos Santos, organizador da frente por eleições livres e que acabou assassinado. Em 1961 um grupo de 24 exilados, portugueses e espanhóis, sequestra o navio Santa Maria e inicia um movimento pela deposição de Salasar. Sob o comando do capitão Henrique Galvão, o fato obteve repercussão mundial e o navio revolucionário esteve ancorado no Brasil, provocando o ódio da direita brasileira favorável ao ditador luso e a qualquer outro tiranete de plantão. Lembro-me muito bem desses fatos que acompanhei dia-a-dia pela imprensa. Tudo envolto na extraordinária linguagem romanesca de Saramago.
E assim o salazarismo caminha para a dèbacle. Portugal e o mundo dão profundo suspiro de alívio. O romance de José Saramago se impões como autêntica obra-prima, a saga dos oprimidos, mostrando mais uma vez que só na democracia o ser humano pode viver com dignidade. Meus parabéns à professora, pesquisadora e escritora Conceição Flores pelo ensaio penetrante e justiceiro.
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(*) “Revista da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras” (ANRL), Natal, Número 75, 2023, p. 33.