Guimarães Rosa é um dos escritores mais lidos e estudados da literatura nacional. Com efeito, sua obra é inesgotável e revela uma criatividade espantosa como não se encontra igual. Ao longo dos anos venho lendo e relendo suas obras, em especial o “Grande Sertão: Veredas”, e a cada nova incursão mais me surpreendo.
Em 2022, por iniciativa da Universidade de Brasília (UnB), foi realizado um colóquio internacional para comemorar os 60 anos da publicação do livro de contos “Primeiras Estórias.” Coordenado por Gustavo de Castro, Clara Rowland e Leandro Bessa, cada conto do livro foi esmiuçado por um professor ou professora especializado na obra roseana. Os ensaios então apresentados foram reunidos no livro “As Primeiras Estórias de Guimarães Rosa”, publicado pela Editora da UnB (2024).
Alguns contos foram submetidos a uma análise tão ampla e complexa que parece ter se desligado do texto e pairado no ar da mais etérea filosofia. Como ficcionista, fico me indagando de que forma o autor poderia pensar naquilo tudo no momento em que lança no papel a sua obra. Mas, como alertam os teóricos, o ensaio crítico é outra obra, além da criticada, assim como o cinema se liberta do texto que inspirou o filme e o teatro viaja por outros caminhos.
Entre os mais profundos e complexos ensaios está “A terceira margem do rio”, de autoria de Yudith Rosenbaun, professora da USP (24 páginas). Dona de uma cultura e erudição sem limites, a ensaísta transita pela teoria literária, a filosofia, a psicologia e até a psicanálise para formular hipóteses a respeito da insólita decisão do pai de morar no meio do rio provocando a perplexidade do filho. É um texto tão forte que exige redobrada atenção e constante releitura de quem o enfrenta. Certas passagens ficaram retinindo na minha cabeça e a elas tive que retornar. “A terceira margem do rio” é dos contos mais comentados de Rosa, o que levou a ensaísta a dizer: “Isso torna o desafio do analista literário muito maior, uma vez que não será fácil abordar algo original diante de tudo o que já foi escrito” (p.109). Mas existirá algo original? Rosa terá pensado em tudo isso ao escrever esse conto? “Meu intento neste artigo – prossegue ela – longe de trazer uma novidade, será interligar algumas linhas de força desse rio-texto maravilhoso, buscando convergi-las em torno de um efeito estrutural da linguagem” (Idem). Lembra nessa altura a palavra do próprio Rosa quando disse: “Eu investigava, na época, personagens extra-ordinários, marginais à lógica hegemônica ou cartesiana” já mapeados por vários críticos Difícil entender, fora do campo poético, suas frases inventivas – diz a ensaísta. Prosa e poesia se entrelaçam, é uma prosa poética ou poesia em prosa, penso cá com os comigos de mim, como falava Fernando Pessoa. Ao ingressar de rijo na análise do conto, ela diz: “Pretendo, como disse no início, margear o texto já que mergulhar em seu centro é impossível. O âmago da terceira margem é insondável, é o “inconcebível em termos da razão humana”, como diz o crítico Luís Costa Lima. O conto – escreve a ensaísta – pode ser encarado por dois eixos: a reação da família e do núcleo local e o dilema do filho em seu drama psíquico diante da situação (p.116). Por fim, lembro que ela invoca a célebre passagem de “Grande Sertão: Veredas” em que Riobaldo e Diadorim, ainda meninos, atravessam de canoa a junção do rio De Janeiro com o Velho Chico quando acontece uma cena intimidadora diante da qual Diadorim formula a frase que será seu lema de vida: ”Carece de ter coragem!” (p. 120). Concluindo, diria que Rosa plantou nesse conto um enigma até hoje não decifrado, ainda que desafiando as maiores inteligências.
Outro conto estudado até os últimos limites é “Famigerado” (16 páginas). O autor do ensaio é Abel Barros Baptista, doutor em letras pela UNL (Universidade Nova de Lisboa). Segundo o ensaísta, é uma palavra hoje pouco usada e que parece ter perdido o sentido original. No conto, o doutor está tranquilo em casa quando ouve uns barulhos diferentes. Abre a janela e depara com alguns cavaleiros, entre os quais reconhece um sujeito perigoso e violento, autor de crimes de morte. Ele permanece com o chapéu na cabeça e recusa o convite para entrar, atitudes fora do costume. Apresenta-se como Damázio dos Siqueiras, conhecido de todos e perigosíssimo. Toda a reputação do indivíduo passa pela cabeça do doutor e o visitante se põe a falar. Quer saber se famigerado é ofensa ou elogio. Fora assim tratado e aquilo estava atravessado. O doutor põe os miolos em ação e nenhuma resposta lhe parece suficiente para acalmar o bandidão. Mas, enfim, a resposta vem aos lábios:
– Olhe: eu, como o sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser famigerado – bem famigerado, o mais que pudesse!…
Diante disso Damázio se permite ser famigerado, sem que haja mal. Ele e os outros se vão e o doutor fica ruminando mil ideias sobre a situação e o que havia dito. A paz volta ao arraial.
Assim, conto a conto do livro vai sendo submetido a um crivo agudo e competente, extraindo as mais surpreendentes interpretações. É um manancial inesgotável que nobiliza Guimarães Rosa e desafia o leitor.