O escritor norte-americano Ernest Hemingway (1899/1961) desde cedo sonhou com a realização de grandes safáris no continente africano.Com o passar dos anos eles se realizaram deixando marcas na sua obra de ficção e nos textos memorialistas. Publicou o livro “As verdes colinas de África”, crônica sentimental e saudosista de suas caçadas naquele continente depois de uma doença que muito o abalou. Dois de seus contos mais aplaudidos também são ambientados naquele continente: “As neves do Kilimanjaro” e “A vida breve e feliz de Francis Macomber.”
Ao falecer, deixou os manuscritos incompletos de novo livro sobre a África. Patrick Hemingway, filho do escritor, contando com a colaboração de Mary Welch, quarta e última esposa de Ernest, concluiu e organizou o material para publicação. Veio a público então o volume “Verdade ao Amanhecer – Memória Ficcional”, publicado entre nós pela Bertrand Brasil (Rio – 1999) com introdução do próprio organizador. Como anota ele, não se trata de um diário, mas um misto de ficção e realidade, uma vez que o escritor foi exímio criador de ambiguidades como contraponto entre sonho e fato. O livro é ambientado no Quênia, na região conhecida como Terras Altas Brancas, reservadas aos colonos europeus, e que os africanos nativos (kikuyu) consideravam uma usurpação e que tinha melhor clima agrícola e água em abundância. Na época o Quênia era colônia do Reino Unido. O volume contém 370 páginas e valiosas informações sobre seus personagens, muitos dos quais aparecem em outros livros do autor, e um breve glossário suaíli. O título se deve ao conhecido hábito de Hemingway escrever ao amanhecer.
Na época da narrativa existia no Quênia vigoroso movimento pela independência do país dos grilhões ingleses. Jomo Kenyatta, nativo africano estudado e viajado, era um dos chefes. Casado com uma inglesa, viveu na Inglaterra e, ao retornar, criou o grupo revoltoso conhecido como Mau-Mau. Implacáveis e violentos, seus integrantes faziam juramento solene de fidelidade e atacavam os fazendeiros estrangeiros tidos como inimigos. Usavam como arma longo facão afiado a que chamavam panga e que provocava pavor nos estrangeiros. (Também foi usado em Angola e outros países africanos colonizados). Foi nesse ambiente conflagrado que Ernest, Mary e sua equipe instalaram o acampamento de um de seus safáris. Tudo indica que se deu bem com os Mau-Mau, não os temia e eles não o associavam à potência colonizadora.
É curioso notar que, mesmo sendo estrangeiro e americano numa possessão inglesa, Hemingway foi nomeado fiscal de caça na região do acampamento. O grande caçador vira fiscal de caça. É como se a raposa fosse designada fiscal do galinheiro. Mas ele leva a sério a investidura e declara: “Gosto de exercer o mando, pois o considero a mistura ideal da liberdade e escravidão. Durante vários anos não tinha exercido nenhuma espécie de mando, exceto sobre mim mesmo.” Pelo que parece, a experiência o agradou.
Nas longas e silenciosas noites na selva, quando só se ouviam alguns rugidos e gritos de animais, ele pensava na vida e recordava os velhos tempos que, na verdade, nem eram velhos assim. “Toda infância tem seus lugares míticos. Aqueles que lembramos e às vezes visitamos quando estamos dormindo e sonhando. São tão belos à noite quanto eram em nosso tempo de criança. Mas se você algum dia voltar para vê-los, eles não estarão mais lá. Contudo, se você tiver a sorte de sonhar com eles, verá que à noite são tão maravilhosos como sempre foram.” Frases repetidas em quanto livro existe sobre ele. Volta a repetir, como em tantas outras ocasiões, que todo autor de ficção é um grande mentiroso, quando não um louco. Depois faz a ressalva de que nessas mentiras está a verdade.
Os tempos no acampamento corriam tranquilos e Hemingway parecia feliz. Alta madrugada, porém, todos acordaram com a gritaria dos nativos de uma povoação das proximidades. Uma manada de elefantes invadiu as plantações e foi devorando tudo que encontrava. Melancias, abóboras, xuxus, pepinos, tomates, maracujás e frutas pendentes de árvores eram consumidos com incrível voracidade. Os moradores atiçaram seus cães contra os paquidermes, mas eles se irritaram e ficaram agressivos. Tiveram que lançar mão de tochas de fogo para espantar os animais. Depois se puseram a chorar e lamentar em voz alta pelos prejuízos sofridos. Bwana Hemingway entra em ação e tudo faz para consolá-los, embora com poucos resultados.
No correr dos dias circula à boca pequena que Hemingway mantinha um caso com Debba, nativa linda e sensual. Tinha um porte e um andar elegantes como se estivesse desfilando. É claro que Mary não queria e não podia saber disso, tanto que o organizador do livro se desculpa com ela por tocar em assunto tão sensível. A moça merece uma nota no elenco dos personagens, embora sem explicações sobre o suposto affair. Tudo indica que não foi longe e nem teve maiores implicações.
Enquanto os fatos se sucedem, Hemingway e Mary se entregam à caça grossa. Ela mata um leão poderoso, portador de grandes jubas, e ele abate enorme rinoceronte ao lado do qual aparece numa foto que correu mundo. Celebridade internacional, seus passos eram rastreados pela imprensa em toda parte. Entre o casal parecia haver certa disputa ou concorrência velada. Espírito competitivo, o escritor não admitia perder. Quando ela atirou em um búfalo e o atingiu mal, Ernest terminou de matá-lo e depois ficou cantando vitória. O nativo que portava as armas se coloca a favor de Mary e afirma que o búfalo a ela pertence.
Para encerrar estas notas, que são longas, registro uma pequena surpresa. Hemingway foi leitor voraz das obras de Georges Simenon, como ele próprio confessa. Nas noites solitárias do safári ele lia sem parar para não deixar o cérebro enferrujar, usando suas próprias palavras.
O safári africano foi um sucesso. Patrick e Mary fizeram muito bem em publicar este livro, documento imperecível do escritor em ação e na intimidade.