Meu amigo Itagiba rumava para casa, cruzando os campos. Ônibus lotado, passageiros silenciosos, tudo corria bem. Quando faziam a última etapa, uma passageira da frente começou a gritar e chamar os vizinhos. Que foi, que não foi, ela apontava para o passageiro a seu lado, cidadão carregado de anos, e exclamava meio sem fôlego: “Ele não se mexe! Está morto! Está morto!” E de fato, não demorou para que o homem desabasse sobre o ombro da vizinha apavorada. Gerou-se pequeno tumulto e o motorista estacionou para verificar o que acontecia.
A mulher levantou e se afastou do morto, enquanto os demais faziam um círculo sobre ele, examinando e discutindo. Soube-se que ele embarcara só, no início da viagem, concluindo-se que falecera no percurso. E agora, que fazer? “Vamos chamar a polícia! – sugeriu alguém. – Ela tomará as providências.” A vizinha, entre choros e tremores, jurava que não voltaria ao seu lugar, não ficaria um minuto sequer ao lado do defunto.
Sentado mais para os fundos, Itagiba observava a confusão. Diante da indecisão reinante, opinou para que seguissem viagem, afinal já estavam perto, e no destino seriam tomadas as providências legais. Testemunhas não faltavam de que o homem morrera por conta própria, sem a menor intervenção de outrem. E, ainda por cima, tivera uma passagem silenciosa e tranquila. Morreu sem um ai, morreu como um passarinho – no dizer do povo.
Mas ele não contava com o imprevisto das reações humanas. Com o dedo em riste, uma passageira o acusou de desumano e cruel. Como poderiam viajar com o pobre homem sentado, passando-se por vivo? Outro, invocando os versículos, sustentava que seria uma atitude anticristã a ser punida com severas penas futuras. Um cidadão engravatado afirmava que ele era destituído de sentimentos, um monstro. O motorista, aparvalhado, olhava para uns e outros sem saber o partido a tomar. Bom de falas e ainda melhor de gestos, Itagiba esgrimiu argumentos. Mostrou que seria um absurdo permanecerem na estrada, debaixo de um solão daqueles, esperando que a polícia se deslocasse desde a cidade. Poderia demorar horas, haveria que vencer a burocracia, localizar parentes ou conhecidos, e a noite os alcançaria no caminho, tornando mais tétrica a situação. “Já imaginaram – gesticulava ele – se o espírito do homem, intranquilo, começa a perturbar os passageiros aqui dentro do ônibus, depois que a noite se fechar? Ninguém sabe que espécie de espírito habitava esse corpo!” Apesar da situação, não perdeu seu reconhecido senso de humor, no caso macabro, ou negro. As pessoas pareciam se convencer aos poucos, retomando seus lugares e concordando em continuar a viagem. A vizinha do falecido, lá nos fundos, cada vez mais assustada, gritava: “Eu não viajo ao lado dele! Nem morta!” Num rasgo de valentia, meu amigo respondeu: “Trocamos de lugar. Você senta no meu e eu viajo aqui, ao lado do falecido. Ele parece ter sido pessoa muito simpática.” Assim aconteceu. Fez o restante do trajeto ao lado dele, observando a fisionomia plácida do homem que parecia descansado. Incomodavam um pouco aqueles olhos abertos. Num gesto quase automático, fechou os olhos do morto, admirado com a facilidade como as pálpebras desceram e assim permaneceram. Por sorte, o falecido se inclinou para o outro lado e não pendeu sobre seu ombro. Preferiu a janela.
Chegando ao destino, familiares do homem, avisados pelo motorista através do rádio, o esperavam na rodoviária para as providências. Descendo com os demais, Itagiba ainda lia as censuras contra ele em muitos olhares.