O escritor norte-americano Ernest Hemingway (1899/1861) é um curioso caso de sobrevivência literária nestes tempos modernos. Sua presença na mídia estrangeira e também na brasileira é constante, como acontece agora com o lançamento de sua obra póstuma “Verdade ao Amanhecer” (Bertrand Brasil – Rio – 2000), conforme foi organizada e prefaciada por seu filho mais velho Patrick Hemingway. O alentado livro contém a memória ficcional do escritor a respeito de um safári por ele chefiado à África Oriental, em 1953/1954, em companhia de Mary, sua quarta e última esposa. Nessa época um negro africano educado na Inglaterra, Jomo Kenyatta, líder da tribo kikuyu, havia deflagrado uma rebelião de trabalhadores rurais negros contra os fazendeiros europeus acusados de roubar suas terras, e que ficou conhecida como a revolta dos Mau-Mau, no Quênia. A presença dessa organização revolucionária, temida por todos, aparece como pano de fundo deste relato, embora seus integrantes nunca se mostrem. O livro, como se vê, é um longo texto que mistura memória e ficção, sendo impossível, muitas vezes, separar uma da outra, embora seja mais um daqueles que põem a nu o “lado matador” do escritor, aspecto enigmático e incompreensível num homem de tal sensibilidade artística. Na verdade, o que predomina no imenso livro são as caçadas e o prazer que elas provocavam no escritor, sempre disposto a declarar que “amava” os animais abatidos cuja nobreza sucumbira diante de certeiras balas. A descrição minuciosa das estratégias e técnicas de caça, como locais, direção do vento, armas adequadas, posição de tiro e outras espelham a paixão pela caça, paixão compartilhada pela esposa, cuja perseguição a um magnífico leão só cessou quando o teve tombado a seus pés. Diga-se, no entanto, que não se pode afirmar fosse o texto destinado à publicação, tanto que Hemingway não o concluiu e nem lhe deu a redação final.
Mas o livro não se esgota aí, contém muito mais, prendendo e fascinando o leitor com aquela magia que “papa” Hemingway punha em tudo que escrevia, espécie de marca pessoal imitada sem sucesso em todo o mundo. As descrições fotográficas da paisagem africana, repleta de vida selvagem, onde a verdade ao amanhecer pode ser grosseira mentira ao meio-dia, não merecendo mais o menor crédito. A exuberância inacreditável da floresta, a quantidade incontável das espécies vegetais, a variedade infinita de cores, tonalidades, cambiantes, flores, efeitos, panoramas, tendo ao fundo a Montanha onipresente, inspiradora de uma de suas obras primas – “As Neves do Kilimanjaro.” Os sons próximos ou remotos, agudos e cavos, conhecidos e impossíveis de identificar, todos eles dando sua colaboração para o clima de mistério impenetrável. A psicologia tortuosa de povos sempre explorados e oprimidos, pessoas desconfiadas no início, leais e amigas quando adquirem confiança, para quem tudo deve ser feito com calma, sem tropelias, inclusive os diálogos, iniciados com rodeios intermináveis e, muitas vezes, recheados de parábolas e símbolos difíceis de alcançar pelos de fora. Sua cultura, seus valores, lendas, crendices, fé, costumes, modos de vida que penetram fundo num passado secular, tudo enfim que acaba formando um painel impressionante da África e nos ajuda a entender porque ela chegou à triste situação de hoje. Mesmo sem intenção, o autor registra as sinistras marcas do colonialismo.
Outros aspectos, biográficos ou ficcionais, merecem atenção. As recordações dos lugares míticos da infância, opiniões sobre o ato de mandar, as notícias ruins, a medicina amadora imposta pela necessidade, a amizade, o fantástico e o absurdo na vida e na literatura, o ritmo de dança indispensável no box e nas touradas, as cidades prediletas, o julgamento dos escritores em geral. Para ele, todo autor de ficção era um trapaceiro, era por natureza um mentiroso, condição que não negava nem a si próprio, embora se auto-absolvendo “porque fabrico a verdade mais verdadeira do que poderia ser…” E ainda as opiniões sobre as letras italianas, Stendhal, George Orwell, seu amigo Scott Fitzgerald e Simenon, confessando sua veneração por este último. São manifestações de autêntico crítico literário.
Concluindo, valeu o reencontro com o mestre Hemingway.