Desde piá Nhô Marco fôra madrugador. Pulava cedo da tarimba, mesmo que fosse para ter mais tempo para não fazer nada – excogitava bem humorado. A luz do dia repontava para longe os fantasmas noturnos. Quentava água, sorvia uns mates e café preto, depois saía. Passava os olhos pela égua no piquete, pelo bacorote que engordava no chiqueiro, pelos cabritos, galinhas, patos e algumas angolistas criados soltos. Acompanhado pelo Jasper, guapeca da estima, entrava no mato úmido, pingando sereno, às vezes com as copas branquejando da geada. Nessas ocasiões a ciática ameaçava e o reumatismo pinicava nas juntas. Mas aos poucos, à medida que andava, o incômodo desaparecia
Ruminando lembranças de dantes, dos tempos do onça ou de quando enxó tinha bainha, embicava por carreiros pouco trilhados, cujo fundo principiava a criar capim. Num dia pegava aquele que subia o cerro, no rumo do mato mais denso e inceiro; no outro cambava para o sul, cruzando pela margem do sumidor inçado de mato sujo onde a saparia fazia coro; num terceiro seguia para o norte, justo aquele que levava à Vila, por isso mais aberto e sovado. Com freqüência, porém, rumava para os lados da estação isolada do Anhangüera, panorama que lhe fazia um bem que não sabia explicar. Desde o tope do morro, sentado num toco, espraiava o olhar pela baixada, avistando a estação com seus beirais largos e plataforma de pedra-ferro, as casinhas do telegrafista e do guarda-chaves, a caixa d’água, as fileiras de lenha e, correndo em duas paralelas de trilhos, a linha principal e o desvio. Para o outro lado, a perder de vista, as campinas de capim duro, outrora povoadas de bugres cor-de-cobre, ligeiros na flecha e na lança. Ali sentado, ficava um tempão, baforando o palheiro, contemplando e assuntando. A satisfação aumentava quando coincidia com a passagem de algum trem.
Recordava os anos vividos para as bandas do Pito Aceso, quando foi gente, domando cavalos xucros, laçando reses em campo aberto, marcando gado na mangueira. E vinham as caçadas de onça, viado e tatu, a procura do mel das lixiguanas e vuíras, a cata dos guamirins pretos e ingás amarelos. As gauchadas nas festas para impressionar as moças, o churrasco saboreado à beira do moquém. Entremeando tudo, voltavam cenas da revolução, quando se entrincheirou, junto com o falecido Bebe Água, no sóte da casa da festa e dali os dois furaram de bala muito inimigo apanhado de sopetão. Nhô Marco franzia o rosto pregueado, num sorriso disfarçado, no atropelo de tanto pensamento misturado. Suspirava fundo, considerando que aquilo estava no passado, espécie de poço sem fundo, e, portanto, não voltava jamais. Sentia uma vaga vontade de pegar por aqueles trilhos numa longa viagem sem retorno, cansado da solidão. Mas ir para onde, Nhô Marco? Prosear com quem? – questionava. Fazia tanto que não proseava de espaço que nem sabia mais, não tinha assunto e nem ânimo para nhenhenhén perlongado. No fundo, bem no fundo, acabava bendizendo a solidão. Exausto da mesma paisagem e de excogitar idênticos pensamentos, enrolava outro cigarro e principiava o retorno. Ouvia os barulhos da mataria, o canto da passarada e algum ronco de bugio, tudo familiar e conhecido, caminhava no rumo do rancho, com a bombacha abaixo da linha da cintura, ameaçando queda. Aquele mundão de mato o recolhia como parte dele. (Continua na próxima semana).