Era um banhado médio, nem grande nem pequeno, sem nada de anormal ou diferente. Meio redondo, ficava na canhada da coxilha em que funcionava uma serraria, a única daquelas bandas. Dentro dele cresciam aqueles matos típicos de banhados, desses que gostam de umidade, aqueles matos ásperos e espinhentos, inçados e sujos, formando murchões entre os quais se via a água estagnada. Imprestável como pastagem e inútil para outros fins, ali estava ele como parte feia da paisagem dês que o mundo é mundo, sem que ninguém se incomodasse com ele. Mais seco no verão e mais cheio no inverno, só interessava à saparia barulhenta que nele tinha sua morada, aos mosquitos e outros seres miúdos que gostam desses brejos.
Mas vai que uma noite, já bem tarde, quando a Vila dormia e nem os guapecas sem dono se arriscavam a andar pelas ruas desertas, alguém observou por trás de uma cortina indiscreta uma presença estranha naquele banhado em geral vazio. Uma pessoa alta e magra, coberta de chapéu, trajando roupas escuras, caminhava dentro do banhado, com as pernas enfiadas na água até as coxas. Munida de um bastão, a pessoa parecia varejar o fundo mole, como se procurasse alguma coisa, esforçando-se para não fazer barulho. Ali ficou um tempão, andando para lá e para cá, cotucando o chão com o bastão e com os pés. Depois, como se desistisse, saiu pelo lado onde havia mato alto e sumiu na noite.
Intrigado, o olheiro, um tal de Joca Volante, morador dos altos da capela, ficou com a impressão de que o sujeito misterioso seria o gerente da serraria, alemão espigado e magro, mas, por prudência, resolveu silenciar sobre o que viu.
Alguns dias mais tarde, numa noite por demais escura, o sujeito reapareceu, saindo outra vez do mato alto. Entrou no banhado, apesar do frio, e foi esquadrinhando o fundo com o bastão, insistindo nos lugares onde não estivera na visita anterior. E assim aconteceu em diversas noites, não ficando canto do banhado sem exame. Não havia dúvida de que procurava alguma coisa, no maior segredo, no fundo barrento do velho banhado da canhada. Pela altura e pelo jeito de andar, Joça se convenceu de que era mesmo o gerente, seu próprio patrão. Restava descobrir o que ele procurava.
Não podendo se conter, passou o acontecido à mulher e armaram o plano: ela passaria a visitar a casa do gerente tentando arrancar alguma informação da empregada, sua antiga conhecida. E assim foi, até o dia em que soube das leituras do patrão sobre a Revolta dos Jagunços, mais tarde rebatizada de Contestado. Matutando e matutando, Joca concluiu que o patrão procurava alguma panela de dinheiro que desconfiava ter sido escondida ali, nos dias bárbaros da Revolta, coisa que devia ter sabido pelos velhos livros que andava lendo. Lembrou-se até do antigo falatório, sepultado nas profundas da memória, sobre um cofre da Coletoria que teria desaparecido, arrastado no laço de algum jagunço monarquista, inimigo do dinheiro da República.
“É isso, só pode, só pode!” – excogitou, já traçando planos, agitado e de olhos brilhantes.
Naquela noite, em horários diferentes, o pacífico banhado mereceu duas visitas. O gerente e o Joca, vasculhando-o em todos os recantos, revolvendo as terras podres do fundo, remexendo nos murchões e toiceiras, desalojando moradores, de ouvidos afinados para ruídos diferentes, tateando tudo que parecesse metálico.
Numa dessas noites, espiando pela janela e esperando a saída do gerente para rumar ao banhado, Joca viu, desolado, que outras pessoas penetravam de bastão em punho naquelas águas turvas. Levada pelo ar, transmitida por mecanismos desconhecidos, a notícia transpirou. Em breve, muito breve, a Vila inteira invadiria o outrora desprezado banhadinho da canhada!