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Enéas Athanázio
Enéas Athanázio
Promotor de Justiça (aposentado), advogado e escritor. Tem 60 livros publicados em variados gêneros literários. É detentor de vários prêmios e pertence a diversas entidades culturais. Assina colunas no Jornal Página 3, na revista Blumenau em Cadernos e no site Coojornal - Revista Rio Total.
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O brasileiro Antonio Machado e a Poranduba

A leitura dos livros de Francisco de Vasconcellos é sempre uma lição de Brasil. Historiador e folclorista, tem uma visão panorâmica e segura da formação do país e de seu meio social. Pesquisador e trabalhador incansável, produziu uma obra imensa e variada, ainda em plena execução. A leitura de seu mais recente livro, além do prazeroso contato com a boa prosa me ensinou muita coisa sobre nosso país (*).

Nessa obra ele analisa as crônicas de Antonio Machado, um brasileiro que não se confunde com o espanhol homônimo e que foi, acima de tudo, poeta. Nelas, o brasileiro comenta uma série de lendas e crendices populares correntes no interior do Rio de Janeiro e que me parecem semelhantes às de todo o país com algumas variações. Segundo Vasconcellos, ainda que interessantes, as crônicas pecam pela ausência de método e rigor científico exigidos nos ensaios folclóricos. O cronista não se preocupou com tais aspecto e se limitou a comentar o que viu e ouviu.

Sobre cada um desses textos, publicados em jornais, Vasconcellos fez um ensaio, acrescentando-lhe suas experiências pessoais, seus conhecimentos e comentários críticos. No primeiro deles trata da lenda de Tiradentes segundo a qual um dos braços do mártir, depois de ter sido esquartejado, foi pendurado no galho de uma figueira no interior do Rio de Janeiro e que se tornou famosa como “Figueira de Tiradentes”.  O mineiro trilhava a estrada geral que ligava as Gerais à capital para ser julgado, atendendo a uma intimação do governo. Sobre esse tema surgiram muitas hipóteses e discussões que o folclorista disseca com a permanente clareza de suas análises. É um ensaio longo e minucioso, acrescido de muitas notas esclarecedoras.

Segue-se um longo ensaio sobre o Espírito Santo. Após a ressurreição, Jesus Cristo teria permanecido na terra por mais 40 dias, animando os discípulos a se espalharem pelo mundo em pregação, ainda que enfrentando todos os perigos e se opondo a crenças milenares arraigadas nos corações. Assim foi feito. Em consequência, muitas celebrações, festas e folias em louvor ao Espírito Santo surgiram em diversos lugares. “A devoção popular ao Divino Espírito Santo é uma unanimidade em qualquer latitude deste país” – escreve o ensaísta baseado em pesquisas e informando que tais festividades não são exatamente iguais. No Brasil elas têm origem portuguesa e açoriana. Câmara Cascudo se refere às folias em que o folião vai à frente elevando a Bandeira do Divino, por sinal título de um saboroso livro do catarinense Edson Ubaldo. Em busca de subsídios para sua pesquisa, que ainda considera incompleta. Vasconcellos rastreou imensa bibliografia e entrevistou pessoas, obtendo os mais curiosos resultados. Admirável ensaio, fruto de prolongada dedicação.

O livro contém muito mais. Ensaio específico trata de um duplo homicídio praticado por escravos contra os senhores, fatos que acredito tenham sido frequentes porque o tratamento dispensado à senzala costumava ser brutal. No caso comentado, as vítimas foram o casal de Alexandrinos (marido e mulher tinham o mesmo nome), conhecidos como “os bondosos Alexandrinos”, tão rudes eram no trato dos servos. Ele ficou conhecido por ter trocado um escravo por um cachorro. É claro que os negros receberam a “merecida pena…”

Assombrações e fantasmas que rondavam as grandes e isoladas fazendas, as cobras variadas que se multiplicavam, algumas delas viciadas em mamar nos seios das mulheres enquanto colocavam a ponta da causa na boca do nenê para não chorar. Não satisfeitas, mamavam também nas vacas, nas cabras, nas capivaras e até nos tatus-fêmeas. Animal danado, vítima de eterna maldição, segundo a vox populi.  

O volume se fecha com a notícia de uma missão cultural realizada pelo autor. Além do relato, ele transcreve versos populares colhidos ao vivo, enriquecendo o volume. Estampa ainda diversas fotos antigas que revelam o cuidado dedicado às construções, em especial às igrejas e capelas.

Por fim, antes que me esqueça, anoto que poranduba, vocábulo de origem indígena do Amazonas, significa histórias fantásticas, fatos curiosos, e abusões.  

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(*) “Do Piabanha ao São Francisco”, Francisco de Vasconcellos, Juiz de Fora, ARTEG, 2020.

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