Meu amigo João Fernando Maciel, pernambucano de Caruaru, sociólogo, professor e jornalista, companheiro nas andanças pelos ínvios do sertão calcinado pela estiagem, enriquecendo a viagem pelo muito que conhece de nordestinidades e pela incansável disposição para andar, ver e especular, não havia igual. Mesmo com o solão a pino e o ar tão pesado que a gente quase podia avistá-lo nas quebradas poeirentas, nunca cessava de se agitar, falar, gesticular.
Doutor por formação e pela boca do povo, foi autêntico “coronel” da tradição. Chefe sem cargo, político sem mandato, era um líder natural e homem público que viveu e sofreu pela sua terra, vibrando e padecendo por sua gente, por todos se interessava e com tudo se preocupava. Em Caruaru, a todos conhecia e por todos foi reconhecido, na célebre feira, nas ruas, no comércio, nas repartições. Com todos conversava, a todos orientava, aconselhava, informava, ajudava. Distribuía livros aos montões a alunos pobres, resolvendo problemas miúdos e graúdos, advogando causas impossíveis, pagava o lanche do esfomeado e dava esmola ao ceguinho da esquina. Tinha um ror de compadres e afilhados.
E andava, perambulava, troteava sem cansaço. Parecia ubíquo, porque estava em todos os recantos, no centro, nas ruelas, nas avenidas e nos becos, inclusive nos que não têm saída. Sentia necessidade inadiável de fiscalizar todos os dias o que ocorria com o povo da cidade, o seu povo. Nunca ficava só. Ao seu redor havia um séqüito de peões solícitos e, dentre eles, se destacava Edivaldo, o capataz. Atento, acudia ao mínimo gesto do chefe e cumpria suas ordens sem pestanejar.
“Edivaldo, – ordenava, – leva estes livros pros meninos de Siá Marocas. E olha lá, é um pé lá e outro cá!” – E lá ia o capataz, de passo firme, com o pacote no sovaco.
Mal refeito da soleira, Edivaldo não esquentava banco.
“Edivaldo, – tornava a mandar o chefe, – vai buscar na feira o chá que recomendou compadre Minervino. E que seja do legítimo.” Lá ia ele, outra vez, em passo rápido, campeando de banca em banca a milagrosa erva.
Já em casa, refestelado na cadeira de braços que mais parece um trono, tornava o chefe a mandar.
“Edivaldo, puxa aqui as minhas botas.”
O capataz se aproxima, pega nos bicos e tacões, principia a tirar as gaiteiras.
“Quantos litros de leite deu a vaca Cumbuca?” – perguntava ao capataz.
“25, seu coronel.”
“E a vaca Malhada?”
“35, seu coronel.”
“E a vaca Pedrês?”
“27, seu coronel.”
“Sóóó!!! Diacho! Os meninos hoje não têm o que mamar!” (1)
Brincadeiras à parte, Maciel foi uma das pessoas mais informadas sobre sua terra e sua gente, figuras humanas, lugares, bichos, arte, artesanato, histórias, causos, vegetais – não havia o que não soubesse. Uma enciclopédia viva e ambulante. Em sua casa e no escritório reuniu um acervo de fazer inveja a qualquer pesquisador – livros, discos, fitas, fotografias, folhetos de cordel, revistas, jornais, documentos, recortes. E,além disso, mantinha intercâmbio com pessoas e entidades de todo o país. Não lhe bastavam os horizontes da cidade e da região. Queria ser um “globe-trotter” nacional via postal. Assim se fazia presente em toda parte, levando consigo sua simpática e acolhedora cidade.
É isso que admiro nos nordestinos, a dedicação ao chão natal, que levou Câmara Cascudo a escrever uma de suas mais belas frases: “Não rezo e nem ofereço a intelectual que não tem o pó da terra natal debaixo dos pés da alma.”
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(1) Adaptação de um poema do poeta popular Ascenso Ferreira.