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Balneário Camboriú
Enéas Athanázio
Enéas Athanázio
Promotor de Justiça (aposentado), advogado e escritor. Tem 60 livros publicados em variados gêneros literários. É detentor de vários prêmios e pertence a diversas entidades culturais. Assina colunas no Jornal Página 3, na revista Blumenau em Cadernos e no site Coojornal - Revista Rio Total.
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O JUIZ QUE ESCREVIA EM VOZ ALTA

Juiz aposentado, Dr. Nicácio deu para pensar em voz alta. Andava pela casa, pela rua e pelo jardim falando consigo mesmo. Era nessas conversas intimistas que nasciam as inspirações para as histórias que o Velho inventava e saía a contar para os amigos que o aconselhavam a escrevê-las. Gostavam das histórias dele Era de uma criatividade inesgotável. A filha o estimulava a prosseguir e sugeria que anotasse as histórias para não esquecer.

A esposa, no entanto, deu para implicar com aquele costume:

– Nicácio, estás falando sozinho outra vez? Parece um velho gagá!

– Marieta, respondia ele, presta mais atenção, querida. Quando me vires falar ao vento, estou, na verdade, conversando comigo mesmo. É um exercício de pensar alto, mulher.

Ela não entendia que esse era o método criativo dele. Afinal, não existem escritores que ditam às secretárias, outros que gravam seus casos e aqueles que vivem de bloco em punho, tomando incontáveis anotações? Não houve até aquele que anotava as ideias na parede e perdeu tudo quando ela foi pintada?

Marieta, porém, não se conformava e indagou que espécie de histórias o marido escrevia falando. Tratava-se de casos muito variados, mas ele prometeu que a colocaria como personagem central de um deles. Nicácio lembrou-se de uma história da vida dela sobre a qual ela não queria nem ouvir falar. Foi um santo remédio, a mulher jamais voltou a implicar. Faz lembrar dos leitores que aplaudem os escritores locais enquanto eles cantam loas às figuras e belezas da terra, mas ficam indignados quando começam a aparecer as mazelas locais.

E Nicácio continuou produzindo. Em voz alta e em conversas com ele próprio.

O casamento, porém, não ia bem, estava em crise. Tudo virava discussão das brabas, até que Marieta decidiu se mudar para o sítio O marido lamentou. Juiz em varas de família, por longos anos, havia salvo muitos casamentos, mas, no caso dele próprio, nada poderia fazer. Agora, mudar-se para o interior, nem pensar. Vivera por longo tempo em bibocas arredias de civilização, como dissera um escritor mineiro. Ele adorava a cidade e não arredaria pé.

Exercitando algum humor negro, disse:

-Minha velha, como juiz consertei muitos casamentos, lastimo sua partida. Mande-me notícias das galinhas.

Talvez ele fosse como Monteiro Lobato que dava nome às suas galinhas. Marieta rumou para os grotões e ele seguiu escrevendo em voz alta.

Quando ele completou oitenta anos a filha Rosário realizou uma grande surpresa: mostrou-lhe o volume “Histórias do Velho”, publicado a capricho. O lançamento aconteceu no vetusto casarão em que o casal residiu, depois de arrumado e lavado. Compareceram amigos que ainda viviam, autoridades e curiosos. Na ocasião o autor declarou:

– Obrigado, minha filha, por ter me ajudado a parir este filho que não tive de carne e osso, mas o tenho agora de alma e de saudade. Marieta, minha sempre adorada Marieta, por que não esperou um pouquinho mais? “Histórias do Velho” é para você. Até nosso reencontro, querida! 

As galinhas ficaram, mas Marieta havia partido.

Três meses depois, o Velho parti, imortalizando o que pesara alto.

Eis um resumo livre do conto “O Velho que pensava alto”, de autoria de Mardone França, escritor potiguar, pesquisador, professor e fotógrafo, publicado na “Revista da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras” (ANRL), Natal, Número 76/2023, p. 115. 

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