Pelo que tenho observado, o padre Cícero Romão Batista (1844/1934) é das figuras mais biografadas da história nacional. São incontáveis as obras a respeito dele, sua vida e suas ações, em prosa e verso. Em 2017 mais um ensaio biográfico sobre ele veio somar-se aos já existentes, elaborado pela freira belga Annette Dumoulin e publicada por Edições Paulinas (S. Paulo – 2017) (*). A autora estuda o fenômeno padre Cícero, as romarias e os romeiros de Juazeiro do Norte e tudo que se relaciona ao assunto há mais de quarenta anos. Além de revisar todos os passos da vida do sacerdote, sempre embasada em sólida documentação, a obra tem o mérito de focalizar os efeitos da pregação e do trabalho dele até os dias de hoje, incluindo a manifestação do Papa Francisco.
0Ndcascido na cidade do Crato, no chamado Cariri cearense, o padre Cícero teve uma infância e uma juventude normais, sem nada de extraordinário ou digno de nota. Ordenou-se sacerdote na catedral do Ceará, em Fortaleza, pela mão de Dom Luís Antônio dos Santos, o primeiro bispo do Ceará, depois de ter cursado o seminário da Prainha, na capital cearense. Durante o curso, aliou-se ao grupo de seminaristas que contestava o regime imposto pelos padres franceses, mas, ao que parece, isso não teve maiores consequências.
Celebra sua primeira missa em Juazeiro, então um povoado pobre e inexpressivo, onde fixa residência com a família e se torna o capelão da Capela de Nossa Senhora das Dores. Batalha pela construção da igreja e começa a ser notado pela vocação ao serviço dos pobres. Tudo corre bem, a pequena vila floresce e o capelão se torna pároco por ato de Dom Joaquim José Vieira. Também é nomeado pároco de São Paulo, hoje Caririaçu, sem sair de Juazeiro. Eis que então ocorre um fenômeno que trará graves consequências à sua vida, como da paróquia e da região. No dia primeiro de março de 1889 ao dar a comunhão à beata Maria de Araújo, a partícula se transforma em sangue na boca da mulher, escorrendo-lhe pelas faces e molhando as toalhas ali colocadas. O fato se repete, tanto na igreja como em outros locais e ganha ampla repercussão, tornando-se conhecido como o milagre de Juazeiro. Monsenhor Monteiro, açodado, proclama os acontecimentos no púlpito e eles chegam ao conhecimento de Dom Joaquim José Vieira, segundo bispo do Ceará. Desde o início ele os considera um embuste, uma manobra para angariar fama e prestígio. Exige que o padre Cícero os desminta em público, sem levar em conta que ele viu, testemunhou, presenciou e, mais que isso, acreditou no que viu como um fenômeno sobrenatural ou milagroso. Aquele sangue, acreditava, seria o próprio sangue de Cristo. O bispo é inflexível, nomeia uma comissão de alto nível para estudar a questão e, para seu desagrado, ela conclui que os fatos não tinham explicação natural, ou seja, constituíam um milagre. Inconformado, designa nova comissão e não se conforma com a ampla repercussão dos fatos. A segunda comissão conclui que os fatos nada têm de sobrenaturais, mas padre Cícero continua acreditando neles. Começam, então, as punições. É suspenso das ordens, dispensado das paróquias, exilado para outras localidades, chamado a Fortaleza para se explicar. A Congregação do Santo Ofício reprova e condena os fatos e, depois de longa e penosa tramitação, padre Cícero é excomungado. Nunca, porém, deixou de usar a batina e jamais se afastou da Igreja Católica. Os panos que colheram o sangue da beata Maria de Araújo foram colocados em uma urna que foi furtada por José Marrocos, sem dúvida tentando evitar um exame mais acurado. Maria de Araújo teve o corpo despedaçado e as partes colocadas em locais ignorados. É uma mulher sem túmulo. Enquanto isso as romarias a Juazeiro do Norte só cresciam e o padre Cícero se torna um santo do povo, venerado por milhões de nordestinos. Juazeiro do Norte se transforma na Meca brasileira e o refúgio dos miseráveis.
Decorridos quase 90 anos de sua morte, padre Cícero é mais venerado que nunca. Milhares e milhares de peregrinos de todo o Nordeste acorrem a Juazeiro do Norte para orar por ele, pedir e agradecer pelas graças alcançadas. Juazeiro do Norte se tornou uma cidade pujante como um oásis verdejante no deserto e na seca, regado pelas mais de trezentas fontes de água que manam da Chapada do Araripe. Lá andei por três vezes, visitando Crato, Barbalha, Caririaçu, Santana do Cariri, Assaré e as águas de Caldas onde Lampião dessedentava seus cavalos nas andanças pela caatinga. Apesar de tudo, a constante luta do povo da região pela reabilitação do padre Cícero tem sido infrutífera. O Papa Francisco, no entanto, através de seu secretário, propôs a reconciliação histórica da Igreja com o padre Cícero, reconhecendo o caráter evangelizador de sua obra e a fidelidade à Igreja Católica. A excomunhão, no entanto, não foi levantada. Parece que o Santo Ofício não volta atrás e persiste o paradoxo: o maior santo do povo brasileiro continua excomungado.
(*) “Padre Cícero – Santo dos Pobres, Santo da Igreja”, Edições Paulinas, S. Paulo, 2017.