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Enéas Athanázio
Enéas Athanázio
Promotor de Justiça (aposentado), advogado e escritor. Tem 60 livros publicados em variados gêneros literários. É detentor de vários prêmios e pertence a diversas entidades culturais. Assina colunas no Jornal Página 3, na revista Blumenau em Cadernos e no site Coojornal - Revista Rio Total.
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PRESTAÇÃO DE CONTAS

“Literatura em terras incultas
vale desgosto, aperreio e frustração.”
(F. de Vasconcellos)

Dos mais prolíferos escritores brasileiros, Francisco de Vasconcellos, advogado, ensaísta e folclorista, está publicando mais um livro de leitura agradável e insinuante, revelando seu reconhecimento a pesquisadores e estudiosos que merecem homenagens. Trata-se de “Ajuste Final” (Arteg Bureau – Juiz de Fora – 2023) em que ele reúne variados trabalhos de épocas diferentes e que não é, de forma alguma, uma despedida, como ele mesmo acentua. Começa afirmando sua admirável independência intelectual ao dizer: “Sempre fui desfronteirizado, eclético e ecumênico. Não discrimino e nem me precipito em julgamentos, pois só o faço com base em argumentos e provas convincentes.”

 O volume se abre com uma crônica memorialista em que o autor recorda a publicação do boletim “Encontro com o Folclore”, por ele financiado, e que obteve excelente repercussão exibindo textos dos mais credenciados folcloristas nacionais. Marcou época e entrou para a história da cultura brasileira. Aborda, em seguida o livro “Samambaia”, de autoria de Maria Elvira Macedo Soares, cuja organização e publicação levou a peito, além de subscrever o prefácio, salvando uma obra histórica e reveladora dos costumes do povo do Rio de Janeiro, Estado do Rio e imediações. Eu, que sou “rato de livraria”, conhecia a autora de nome, mas ignorava a existência do livro. Em viagem ao interior de Minas Gerais, onde proferiu palestras, descobriu a existência dos originais de um livro a respeito de Antônio Antunes da França Dó, Antônio Dó ou, simplesmente, Dó, o bandoleiro das barrancas do Rio São Francisco. Entendeu-se com o autor, Manoel Ambrósio, e também trouxe a lume uma obra que retrata as atividades de uma espécie de precursor do cangaço e suas tropelias. Na voz do povo, Dó foi o jagunço mais famoso do sertão. Trata, em seguida, de temas e figuras diversos, como Jove da Mata, o poeta barranqueiro, a longa e proveitosa história do jornal “Tribuna de Piracicaba”, o Clube dos Amigos do Folclore e outros nomes ligados à cultura popular, como Adelino Brandão, Max de Vasconcellos, Sebastião Nunes Batista, Chagas Batista, Domingos Vieira Filho e o inolvidável Câmara Cascudo, presença obrigatória em se tratando de folclore. 

Deixei para o final, muito a propósito, duas figuras admiráveis por ele abordadas em maior espaço: Alberto Torres e Paulo Nunes Batista. 

Nascido em Itaboraí (RJ), Alberto de Seixas Martins Torres (1865/1917) foi da mesma geração dos grandes pensadores Sílvio Romero e Manoel Bonfim. Aos 16 anos de idade já demonstrava visível vocação para a cultura e a luta, batalhando pela abolição da escravatura e a implantação da república no Brasil.  Em tudo se mostrou um intelectual precoce. Advogado formado pela célebre Faculdade de Direito do Recife, foi ministro em Bruxelas, ministro da Justiça, aos 32 anos, eleito presidente (governador) do Estado do Rio de Janeiro e ministro do Supremo Tribunal Federal. Sua gestão como governador buscou valorizar o trabalhador nacional, o “pé duro”, e garantir um pedaço de terra ao camponês, providência jamais concretizada, tanto que ainda há renhidas lutas pela terra, como acentua o autor. A reforma agrária entre nós continua sendo uma quimera. No STF, anota o autor, “preocupou-se com a extensão e limite do habeas corpus e ali começou a pensar naquilo que depois chamaria de mandado de garantia que, ao fim e ao cabo, daria no mandado de segurança.”  A judicatura no mais alto Pretório, ao lado dos grandes juristas da época, foi um desafio para o jovem de 35 anos de idade, mas ele deixou marcas de sua passagem. Aposentado, abandonou de vez o serviço público e se entregou à obra do escritor, sociólogo e articulista dos mais cortejados e combativos, como acentuou Wilson Martins. Agripino Grieco, o mais respeitado crítico literário da época, destinou-lhe as melhores palavras e afirmou: “Encontrei nele o gosto do Brasil.” 

Debruçado sobre os problemas nacionais,  preocupava-se com a destruição de nossas florestas (ninguém se importava com isso), com o tratamento privilegiado ao colono estrangeiro, o pessimismo do brasileiro a respeito de sua pátria, a campanha de descrédito e difamação de nossa raça e concluía que “o nosso problema vital é o problema da nossa organização, pois o Estado é no Brasil um fator de dissolução. O governo no Brasil é a desordem legalizada.”

Analisando a Constituição Federal de 1891, nossa primeira carta republicana, julgava-a inadequada e fora da realidade nacional. Com ele concorda o autor quando escreve: “A primeira carta republicana nunca deveria ter sido esboçada por Rui Barbosa, uma cartola da Senegâmbia, conforme a definição magistral de Oswald de Andrade, mas por Sílvio Romero, jurista de estupenda formação no Recife, ao tempo de Tobias Barreto, e profundo conhecedor da alma e das tradições culturais brasileiras.” Gilberto Amado também analisou a questão das leis brasileiras que ficam vogando no espaço sem conexão com a sociedade.

Torres propunha uma profunda reforma constitucional visando adequar a carta à nossa realidade. Olhando para o meu passado, que já vai longo, creio que todos os itens reformistas por ele propostos foram realizados, de uma forma ou outra, mas os resultados não foram tão auspiciosos. 

O autor lamenta que Alberto Torres esteja no ostracismo. Penso que isso se deve, em grande parte, ao fato de ter sido um crítico implacável que não se curvava a grupos ou modismos e apontava de dedo em riste nossas velhas mazelas. Ora, quem se sentiu contrariado nas suas posições ou atingido, jamais o perdoou e sobre ele baixou uma cortina de silêncio, contribuindo para seu ostracismo.  Com ele acontece o mesmo que ocorreu com Agripino Grieco e Wilson Martins, este bem mais recente.

Deixou dois livros fundamentais para o conhecimento do Brasil: “O Problema Nacional Brasileiro” e “A Organização Nacional”, ambos de 1914, além de outras obras, ensaios e artigos estampados em revistas e jornais.

Nascido em João Pessoa (PB), Paulo Nunes Batista (1924/2019) mereceu do autor um ensaio justiceiro e ressuscitador. Membro de uma família dedicada ao folclore e à poesia de cordel, avultando a figura paterna de Chagas Batista, autor de mais de quinhentas histórias rimadas, Paulo nasceu em berço propício à arte do cordel em que se notabilizou. “Com tamanhos e tão robustos alicerces – escreve o autor – Paulo Nunes Batista não degenerou, justamente porque saiu aos seus, conforme a infalível sentença popular. Mais uma vez fica provado que o pedigree, se não é tudo, ajuda muito na definição das vocações e do caráter das pessoas.”

Embora tenha exercido outras atividades, Paulo Nunes Batista foi poeta popular até a medula. Como disse alguém foi poeta até sem querer. Na mocidade se fez poeta profissional, vivendo literalmente da poesia, declamando em praça pública, onde houvesse junção de povo e vendendo seus cordéis. Produziu incontáveis obras do gênero e inventou as criativas “cartas em versos” que obtiveram grande sucesso. Francisco de Vasconcellos organizou, prefaciou e publicou o livro “Paulo Nunes Batista e o Ativismo Poético.” No correr deste livro fascinante, o autor proporciona admirável visão da obra do poeta paraibano.

Paulo Nunes Batista foi meu grande amigo. Eu o visitei em Anápolis, onde ele vivia, e recebi a visita dele em minha casa. Fiz o prefácio de um livro de autoria dele e mereci um ABC a respeito de meu primeiro livro “O Peão Negro.” Paulo era socialista, espírita, religioso e poeta. Como tudo isso se acomodava dentro de sua alma é um mistério insondável.

Quanto ao autor do livro comentado, é um homem com quem a cultura nacional tem elevado débito. Publicou obras alheias importantes, financiou as publicações, divulgou a cultura popular em publicações por ele sustentadas, viajou por ceca e meca em pregações e propagou a cultura por todas as formas ao seu alcance. Ainda em ação, não cessa de produzir e publicar. Como numa prestação de contas, escreveu estes versos com os quais encerro minhas notas:

“Chamaram-me de egoísta
E também de egocêntrico
O que ora tens à vista
Só demonstra o contrário
No Encontro e na Tribuna
Tornei-me um perdulário.
Gastei somas avultadas
Com matérias de terceiros
Estou bastante compensado
Pois tornei-me um pioneiro.”

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