Nas férias solitárias que passava na casa de praia, ele costumava sentar-se na varanda sombreada pelo flamboyant e observar o escasso movimento da rua, envolto em misteriosos pensamentos e gozando daquela solidão que, como dizia Gilberto Amado, sempre haverá de existir para os que a merecem. No silêncio quebrado apenas pelo leve farfalhar da árvore e pelo canto de algum pássaro, ali permanecia por longo tempo, meio sonolento e desligado do mundo.
Numa dessas tardes, com o sol dardejando, aproximou-se do portão um cãozinho de rua, revelando muito medo, e enfiou o focinho por baixo, assim como quem pede socorro. Branco com manchas vermelhas, desses fox de pernas longas, semelhava um mendigo do reino animal. Orelhas murchas, pelagem suja, pernas trôpegas, estava tomado pelas pulgas e, com certeza, por outros inquilinos indesejáveis. Assim que o rapaz se movimentou o cãozinho tentou fugir, já esperando os maus tratos costumeiros, mas as pernas estavam tão bambas que não conseguiu e foi agarrado. Penalizado, tratou de dar água e dividir com o infeliz vira-lata a comida que ainda lhe sobrava. Ele bebeu e comeu com a voracidade de quem acabava de safar-se do deserto. Depois, mais confiante e com vagas sacudidelas do rabo curto, enfiou-se atrás de uma poltrona e dormiu o sono dos justos.
À tardinha, com o sol declinando, recebeu nova refeição e água fresca. Foi colocado a dormir na garagem enquanto o rapaz se dirigia para o centro em companhia de amigos. No dia seguinte o cãozinho já parecia outro, dava mostras de vitalidade, reconhecia o dono adotivo e balançava com energia o rabinho cotó. Recebeu o primeiro banho e foi libertado de boa parte dos seus incômodos habitantes. Desconhecido o nome anterior, foi rebatizado como Pulga e creio que nenhum outro seria mais apropriado.
Bem alimentado e lavado todos os dias, a recuperação foi rápida. Os pelos já brilhavam, as orelhas se empinaram, as pernas se tornaram ágeis. Mostrava-se carinhoso, disposto para as brincadeiras e não desgrudava do novo dono. Arriscava até alguns latidos quando ouvia outros cães da vizinhança. Tornava-se um cãozinho esperto e vivo, de olhos brilhantes, atento ao que acontecia. Levado ao veterinário, recebeu boa dose de vermífugos e a primeira vacina. Não gostou: choramingou, resmungou, lambeu, mas logo esqueceu e voltou às boas.
Quando o rapaz decidiu ir ao centro, numa manhã agradável, tratou de levá-lo para o primeiro passeio da nova fase de vida. Pulga o acompanhava devagar, ainda com alguma dificuldade para andar depressa, e tardou a sair da rua. Foi atropelado por um carro desembestado, gritou, chorou e esperneou muito, parecia não suportar as dores que sentia. Acolhido e afagado pelo rapaz, foi levado para casa, lavado e medicado com gotas de analgésico. Passou dois ou três dias deitado, choroso, dolorido, sem ânimo para comer e beber. Depois, aos poucos, bem medicado, foi se recuperando e voltou ao normal. Tratado com carinho, em pouco tempo se tornou um animalzinho forte, bonito e brincalhão. Cismou com um pufe que havia na casa e só sossegou quando o destruiu com mordidas que arrancavam pedaços.
Poucos anos depois o rapaz deixou este mundo. Triste e solitário, Pulga mudou de mãos. Viveu algum tempo e depois foi se juntar ao dono que o salvara da miséria. Nunca mais foi o mesmo, parecia não suportar a saudade.