Depois de bom tempo reli o livro “Lima Barreto”, de autoria de Francisco de Assis Barbosa, publicado na Coleção Nossos Clássicos (Editora Agir – Rio – 2005). Trata-se de pequena antologia comentada do escritor carioca, antecedida de substanciosa apresentação do autor, sem dúvida o maior biógrafo e conhecedor da obra limana e de uma cronologia da vida e da obra do escritor. É um livro excelente para quem pretenda recapitular ou conhecer a obra de Lima Barreto.
Na introdução, Barbosa acentua as características básicas da obra de Lima Barreto, considerado pela crítica mais autorizada um escritor brasileiro autêntico. Isso significa que ele produziu uma literatura isenta de qualquer influência externa e refletiu com autenticidade a alma do povo brasileiro. Eminentemente memorialista, registrou como pano de fundo de seus escritos os acontecimentos fundamentais da vida brasileira no período de transição entre a Monarquia e a Primeira República. Junto com o pai, assistiu a solenidade da assinatura da Lei Áurea, encantado pela beleza e pela simpatia da Princesa Isabel. Por outro lado, sentiu na própria pele a chegada da República cujo governo cassou o emprego de seu pai, considerado monarquista por ser compadre do Visconde e Ouro Preto, fato que alterou a fundo sua vida. Em compensação, foi sagrado como o romancista da Primeira República.
Maximalista utópico, enquanto pregava seus ideais igualitários era devoto de N. S. da Glória, subindo o outeiro todo 15 de agosto em louvor à santa. Foi um realista arguto e observador que retratou políticos e escritores da época como foram na realidade e não como posavam. Não poupava a corrupção que já grassava no país, o que lhe valeu o apodo de escritor maldito, aplicado por um de seus biógrafos. Reconhecia, no entanto, a bondade inata do brasileiro e a tremenda luta dos mais pobres pela sobrevivência. Assegura Barbosa que o Brasil está mais nos livros de Lima Barreto que nas decantadas obras de autores consagrados, como Graça Aranha, Coelho Neto, Afonso Arinos e Valdomiro Silveira, “havidos como os mais representativos daquela fase literária”. Entre eles Barroso inclui os regionalistas, embora, a meu ver, Lima Barreto fosse um dos raros regionalistas urbanos de nossas letras, um regionalista de fundo e não de forma. A obra dele não pode ser deslocada do Rio de Janeiro sob pena de ser desfigurada. Para Barbosa, Lima Barreto foi dos maiores, se não o maior escritor realista daquela fase literária e Monteiro Lobato, com a costumeira lucidez, afirmou que ele inaugurou a fase do romance moderno no Brasil e produziu o romance de crítica social sem doutrinarismo dogmático.
Suburbano, pobre, mestiço, dominado pelo álcool, Lima Barreto foi desprezado pelos contemporâneos, vítima de troças e chacotas. Retratado sempre pelos caricaturistas como uma figura muito feia. Maltrapilho e desajeitado, ele se exibia na Rua do Ouvidor, local onde desfilava a classe mais rica do país, chocando os que o conheciam. Indiferente, prosseguia numa deambulação sem fim, palmilhando sempre e sempre as ruas da cidade. Parecia intuir que sua verdadeira vida estava no futuro com a consagração póstuma que viria. Ensaios recentes têm colocado Lima Barreto entre os dez melhores escritores brasileiros e legítimo sucessor de Machado de Assis. No seu tempo, no entanto, foi tido como um fracassado.
Afonso Henriques de Lima Barreto, mulato com nome de rei, como diziam os maledicentes que desapareceram na voragem do tempo enquanto ele deixou uma das obras mais significativas das letras nacionais. Seus personagens imortais povoam a galeria das maiores figuras de nossa ficção. Isaías Caminha, alter ego, pintou com letras vibrantes os redatores de um dos maiores jornais cariocas, o que lhe valeu a proibição de escrever nas suas páginas e até mesmo de ser mencionado. Policarpo Quaresma, o patriota ingênuo e sonhador que pretendia reformar o mundo a partir da lavoura e se deparou com inimigas nunca imaginadas: as formigas. Na pregação nacionalista exaltada, acaba sendo fuzilado como traidor na mais terrível das injustiças. Lucrécio Barba-de-Bode, de profissão desmanchador de comícios, vivendo à margem da política, mas se aproveitando dela porque “sem a política ninguém vai lá” – como[C1] repetia. Doutor Bogóloff, aventureiro russo que pintou no Rio de Janeiro e deu lições de malandragens aos malandros. Xisto Beldroegas, o burocrata fanático que vivia espiolhando a legislação para levantar questões nos processos. Gonzaga de Sá, Numa Pompílio, Clara dos Anjos, Marramaque e outros tantos que povoavam o subúrbio carioca e permanecem vivos na memória dos leitores.
O reencontro, enfim, foi dos mais agradáveis.
– Bem-vindo, amigo Lima! Tive grande prazer em reencontrá-lo! É justo acentuar que Francisco de Assis Barbosa foi extraordinário escritor e sua dedicação ao estudo da vida/obra de Lima Barreto algo comovente.