Aqui o prosador Gerson Valle se mostra com a mesma desenvoltura que o poeta. Refiro-me ao livro “Os Souvenirs da Prostituta – A Novela de Ipanema” (Catedral das Letras – Petrópolis – 2006), que acabo de ler com prazer e crescente curiosidade. Embora o autor a rotule de novela, prefiro vê-la como evocação histórica e sentimental do celebrado bairro carioca onde ele se vale de curiosos engenhos que conferem ao texto um ar original e poético. Nas suas conversas e confidências com os gatos, (seres que não se posicionam na política dos humanos), em especial com Gustavo, dispensa-se de apelar às costumeiras fontes de que em geral se valem historiadores e memorialistas, transferindo aos felinos a responsabilidade pelas informações e fatos que, na verdade, emergem de suas próprias recordações. É um recurso bem urdido e que o autor sabe explorar com segurança.
Assim, descontraído, ele mergulha no passado do bairro a partir dos anos cinqüenta e vai revelando ao leitor lugares, fatos e figuras que fizeram de Ipanema um dos mais agradáveis recantos da cidade. Vão entrando em cena, um a um, os mais curiosos personagens, como as bruxas que sustentaram entre si prolongada “guerra fria”, o marido de uma delas, deputado bilioso, que combatera com furor “o atraso mental do povo brasileiro”, o mendigo “Meu Prezado”, que citava Nietzsche, dormia na calçada e vivia de calção, misturando-se aos demais na democracia praiana que a todos iguala, as prostitutas que faziam ponto na Vieira Souto, entre elas a bonita Kátia, cuja relação com a narradora não convém revelar para não estragar a surpresa, e que colecionava souvenirs dos clientes, talvez como forma de dissipar a sensação de vazio. Havia ainda personagens invisíveis, mas muito presentes, destacando-se o “cheiro da lagoa”, uma das formas com que a bruxaria se manifestava. “Algo forte, muito forte, que tomava as ruas e todos os ambientes…” Tornava-se o assunto único, inclusive nas rodas do chopinho, nos bares e nos botecos, nas esquinas e na areia da praia, porque “estava em tudo e na cabeça de quem quer que nela portasse nariz…” Vinha dos peixes mortos, vítimas cíclicas dos esgotos terceiromundistas que abalavam o orgulhoso bairro. Além dele, ainda que sem cheiro, mas presente nas mentes e preocupações de todos estava outro personagem temeroso, provocando discussões, teorias e práticas de governo – a favela. Mesmo protegida sob o braço esquerdo do Cristo, Ipanema a temia.
O grande personagem do livro, no entanto, é o próprio bairro, com sua geografia, sua paisagem, seus freqüentadores famosos, suas músicas que correram mundo e seu povo praiano, amigo do mar e da areia. Bairro bonito e tranqüilo, com as ruas sem grande movimento, onde desfilavam vagarosos os carrões da época, com as músicas escoando dos bares onde as pessoas, nativas ou não, faziam ao cerco das mesas cativas. Onde se juntavam os grupos em que se discutiam as frivolidades do momento, os azares da política e os sisudos temas de elevado interesse nacional e público. Ipanema que se cristalizou para sempre na memória do novelista e que ele soube reconstituir como crônica permeada de saudade, humor e senso crítico e exibe ao leitor com o mesmo prazer de quem expõe um retrato emoldurado.