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Enéas Athanázio
Enéas Athanázio
Promotor de Justiça (aposentado), advogado e escritor. Tem 60 livros publicados em variados gêneros literários. É detentor de vários prêmios e pertence a diversas entidades culturais. Assina colunas no Jornal Página 3, na revista Blumenau em Cadernos e no site Coojornal - Revista Rio Total.
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SÃO JOÃO DE CIMA

Não é ficção. Existe, de fato, um lugar com tal nome. Não me consta que haja um São João de Baixo, daí imaginar que foi assim batizado para diferenciar de São João dos Pobres, atual Matos Costa.

São João de Cima era, – e creio que ainda é, – minúsculo povoado acavalado numa encruzilhada de estradas vicinais, de chão batido, perdido em meio aos campos e cercado por alguns capões de matos onde farfalhavam velhos e robustos pinheiros. Esbatido pelos ventos que sopravam livres através das coxilhas e canhadas, padecia um inverno terrível e longo, com o frio intenso se prolongando por vários meses. Havia uma pequena igreja cuja torre única apontava para o céu azul, um salão a que chamavam a casa da festa e outra pequena construção de madeira, com dois cômodos, destinada a abrigar os aperos dos cavaleiros visitantes. Em torno delas se erguia uma cerca de arame farpado formando um grande quadro onde eram largadas as montarias para o descanso– o piquete. Nos campos em derredor alinhavam-se antigas sedes de fazendas, algumas delas habitadas por colegas de colégio. Nos capões de mato a passarada, ainda abundante, fazia um coro de cantos e gritos. Numerosas gralhas azuis, hoje extintas,  pousavam em bandos nos galhos altos dos pinheiros.

Apesar da distância, São João de Cima foi um dos meus destinos prediletos para andanças e aventuras. Inúmeras vezes estive lá, a cavalo, pilotando uma charrete, ou, na maioria delas, pedalando na minha bicicleta. Em algumas dessas ocasiões fui acompanhado por amigos, mas em geral ia só, com meus pensamentos e divagações.

Ajeitava na garupa da bicicleta um pequeno cobertor “pulgueiro”, um farnel reforçado e uma muda de roupa, tudo preso com largas tiras de borracha. Vestia uma surrada blusa de lã, cobria-me com um chapéu e partia com o ímpeto dos jovens, feliz por desfrutar de tão completa liberdade. No trecho inicial, até a primeira encruzilhada, a estrada era boa, por ali circulavam caminhões de toras para a serraria e alguns carros. Depois ela se estreitava, formando fundos carreadores onde os pedais enroscavam, e as coisas se complicavam. Nos locais mais fundos, tinha que desviar pelo gramado espesso. No lance derradeiro a estrada quase desaparecia, resumia-se a tortuoso caminho coleante e profundo cavado pelo rascar de patas. Mas a disposição não encontrava limites e tudo fazia parte da aventura. Com o vento frio acariciando as faces, lá ia eu cavalgando minha Horimek de fabricação sueca, incrementada com espelho, campainha, bandeirolas e até luz de dínamo (!).

Numa dessas excursões, tão logo desci a serrinha da usina velha, desabou violento temporal. Vento forte com chuva persistente e gelada que molhava meu rosto e logo transformou a estrada num lodaçal vermelho e liso como sabão. Impossível prosseguir; impossível retornar. Lembrei-me, então, de um abrigo precário que existia por ali. Tratava-se do tronco calcinado pelo fogo de grossa imbuia que havia sido derrubada e uma parte caíra sobre o toco, formando um esconderijo aonde a chuva não chegava. Corri para lá, tratei de limpar o lugar, espantando possíveis moradores, e me acomodei da melhor forma. Fiz um lanche e me enrolei no cobertor, enquanto a pobre bicicleta permanecia ao relento e tomava inesperado banho. A chuva caiu pelo restante da tarde e a noite toda, obrigando-me a pernoitar no abrigo improvisado. Na escuridão da noite o silêncio se fechou, quebrado apenas por algum ruído indefinível e pelo leve rumor dos pingos sobre o espelho das águas do açude da usina. O gado da fazenda vizinha se aglomerou debaixo de um capão de mato e eu ouvia, de vez em quando, o bufo de alguma rês. Na manhã seguinte o sol brilhou cedo. Lavei o rosto no açude, comi o restante do lanche, esperei algumas horas até o chão secar. E então retornei para casa.

Em outras andanças pernoitei na casinha ao lado da igreja. Ali eu ficava bem, havia portas e janelas que podiam ser fechadas e no assoalho de madeira bruta estendia meu cobertor e dormia o sono das pedras. Também dormi nas casas de colegas de internato, depois de me embrenhar pelos caminhos fundos que levavam às fazendas em que residiam. Numa pequena venda, bolicho de beira de estrada, adquiria grossas fatias de pães caseiros, linguiça feita pelos donos e até tomava café passado em coador de pano e leite recém-tirado.

Anos passaram e São João de Cima permanece vívido na minha lembrança. Os campos verdejantes, a mataria densa, povoada de habitantes, as noites estreladas com o luar banhando de prata o vilarejo silencioso. O ar fino e frio afagando as faces e o prazer indescritível de saborear a liberdade na paz bucólica de noites solitárias.

Sem saber e sem pensar, eu vivia alguns dos melhores momentos da vida.

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