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TRADUÇÕES

Enéas Athanázio
Enéas Athanázio
Promotor de Justiça (aposentado), advogado e escritor. Tem 60 livros publicados em variados gêneros literários. É detentor de vários prêmios e pertence a diversas entidades culturais. Assina colunas no Jornal Página 3, na revista Blumenau em Cadernos e no site Coojornal - Revista Rio Total.
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A tradução da obra literária é das mais delicadas e complexas atividades, ainda mais quando se trata de poesia.  Durante muito tempo o trabalho do tradutor não foi valorizado e muitas vezes nem o nome dele aparecia na obra, mesmo depois de uma dedicação longa e exigente. Monteiro Lobato exerceu grande influência na valorização dos tradutores e ele próprio traduziu mais de uma centena de livros para o português. Sua obra revela o quanto estudou e pensou a respeito do assunto, tanto que possuía uma visão perfeita e atualizada do métier. Dizia ele que traduzir é ler a obra no idioma original e depois reescrever em português, mantendo quanto possível o estilo do autor. Para tanto é necessária uma leitura atenta e pensada da obra a ser vertida, o que exige sensibilidade e senso de observação. A versão sem esses cuidados pode se transformar em transliteração, tornando o texto ilegível e pouco fiel ao espírito da obra original. 

William Agel de Mello, diplomata, escritor e linguista realizou importantes traduções. Muitas delas aparecem agora em nova edição do livro “Tradução”, integrante de suas Obras Completas (Editora Kelps – Goiânia – 2019). É um trabalho cuidadoso e competente revelando um tradutor consumado. Os autores traduzidos são todos poetas, entre eles o genial francês Rimbaud, misto de poeta, andarilho e aventureiro.

Jean Nicolas Arthur Rimbaud (1854/1891) nasceu em Charleville, nas Ardenas. Produziu o melhor de sua obra em plena juventude e depois, numa atitude singular, nunca bem entendida, abandonou a poesia para sempre. Quando indagado a respeito, respondia de maneira seca e formal: não me ocupo mais disso! Essa atitude definitiva entrou para a história literária como o silêncio de Rimbaud. Entregou-se desde cedo a uma deambulação constante, percorrendo enormes distâncias em trens, barcos, a cavalo e mesmo a pé por vários países europeus. Era um permanente chegar e partir da cidade natal, afrontando as iras da mãe, que só via no filho um vadio e inútil, incapaz de perceber o valor e a importância de uma poesia que influenciou poetas de todo o mundo e ditou novos rumos à poética universal.

Andou por Paris, onde teve um “affaire” com o poeta Paul Verlaine que culminou em desavença e tiros, tendo este ferido Rimbaud, o que lhe valeu uma temporada na prisão. Foi a Londres e Berlim. Não satisfeito, enveredou pelo Oriente Médio. Esteve em Aden e Harrar, entregando-se a negócios variados. Comerciou com pelas, café e até armas, havendo murmúrios de que chegou a traficar escravos, fato desmentido por seus biógrafos e pesquisadores. Viveu em concubinato com uma mulher etíope, negra, que ele descreveu como sendo de rara beleza. Fez muitas relações e conquistou amigos, embora fosse, por natureza, um solitário ensimesmado e um tanto carrancudo. Foi o primeiro europeu a pisar o solo de lugares sagrados do Oriente Médio, onde só poderiam entrar os fiéis. Tornou-se conhecido entre os árabes como Rambô.

A vida transcorria numa agradável sequência de aventuras. Cavalgadas pelo deserto, pechinchas com os beduínos, contatos com os figurões e políticos tribais, intercâmbio com outras cidades, liberdade infinita. Mas o destino tecia sua trama e uma dor na perna começa a incomodar e vai num crescendo. Incha, aumenta, lateja. É diagnosticado um tumor e os tratamentos se sucedem. Vai a Marselha em busca de recursos, mas a doença se agrava e não há outro recurso senão a terrível amputação. Uma ironia da sorte que um andarilho por vocação se veja na situação de perder um dos membros inferiores. Mas é a triste e dura realidade.

Repetem-se idas e vindas entre a casa materna e o hospital. Luta de maneira denodada para se acostumar com as muletas e a perna de pau, envernizada. As dores, porém, reiniciam e o tumor reaparece, alastrando-se pelo corpo, implacável, incurável. Tem início um rosário de sofrimentos, remédios, terapias, massagens, choques elétricos. O apetite desaparece, não consegue se alimentar e nem sequer se mover. É uma agonia prolongada até o derradeiro dia, sempre assistido pela devotada irmã Isabelle. A mãe, impermeável, quase não o visita. E assim, depois de infindáveis sofrimentos, falece aos 31 anos de idade um dos maiores poetas da extraordinária literatura francesa. 

A irmã abnegada trata dos trâmites para trasladar o corpo a Charleville, cidade natal. Surgem exigências sanitárias. É colocado num caixão revestido de chumbo e recoberto com uma camada de carvão. Embarcado no trem e depois numa carroça, é conduzido ao cemitério de sua cidade. Acompanhantes únicas, a mãe e a irmã num dia frio e nublado, sombrio e triste. Assim termina a última viagem do andarilho.

Agora, como prova da sobrevivência de sua obra, William Agel de Mello oferece ao leitor brasileiro uma seleção dos poemas do imortal Rimbaud. “Sensação”, “Raivas de Césares”, “O Aparador”, “O lobo gritava sob as folhas”, “Sonho de inverno”, “A estrela chorou rosa”, “È uma almeia?”, “Cano de guerra parisiense” e “Vogais” foram os poemas escolhidos e traduzidos com esmero e sentimento.

(Escrito no hospital no dia de meu aniversário)

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