Picuxa não estava gostando daquele baile. Meio sem graça no vestidinho novo, com o rosto e os beiços encarnados de pintura, estava amuada no canto do salão. As outras tramelavam coisas de namoros e festas, os pares troteavam no ritmo da rancheira esfolada na cordeona. Mas ela, muito tesa no banco de tábua, não se animava, nem mesmo quando algum moço vinha tirá-la para dançar. Moça de muito siso, Picuxa não era de se fresquear à toa e aqueles moços nada diziam ao seu coração. Terminada a peça, tornava ao banco e lá ficava, quieta, meio abichornada com aquela buia misturada de prosas, risadas, tinidos de copos, toque de gaita, rangidos de pés no soalho de pinho claro. O pai e a mãe se incomodavam com aquilo; lá vinham seguidinho seguidinho com gasosa espumante, pastéis, caramelos. Ela agradecia com o sorriso bonito e franco, que dava paz aos bons dos velhos.
Não foi longe e deu um movimento de povo na entrada do salão. Chegavam uns par de moços para a festa e foi aquele fuzuê de abraços, saudações e troças. A gentarada de todos os cantos ficou bispando o bolo na boca da sala, uns olhando de frente, outros disfarçando a curiosidade. Os que chegavam logo se misturaram com o povaréu e o baile seguiu em frente. Picuxa, quieta no seu canto, nem ligou praquilo, mas ouviu o comentário de muitas bocas:
“O alarifo! O alarifo chegou!”
Atopetado de gente, o salão estava quente e o ar pesado parecia grosso de pó. A sanfona emendava limpa-bancos, o ambiente era de paz e aquela gente se divertia a la grande. Não aconteceu tiro ou facada, nem mesmo alguma inticação ou desfeita de monta que sujasse a diversão.
Picuxa, muito tesa no banco de tábua, já estava cansada quando a coleguinha do lado lhe cutucou no vazio com o cotovelo.
“O alarifo!” – cochichava a vizinha.
Assim meio assustada, Picuxa levantou os olhos. Na sua frente, olhando fixo para ela, estava o moço mais bonito que ela viu na vida. Tinha a boca rasgada de lado a lado num sorriso de dentes alvos e os olhos verdes fuzilavam no convite para a dança.
O coração de Picuxa deu um baque.
“O alarifo!”
Ajeitando a saia para esconder o susto, a moça levantou e saiu rodando com aquele moço bonito, tão bonito que inté parecia – Deus me perdoe! – santo da igreja da cidade. Só que esse santo – Deus que me perdoe! – tinha um abraço firme e juntava a moça triste contra o peito forte.
Picuxa ficou um jeito boba, ainda mais quando ele pegou a dizer umas coisas no seu ouvido. Ficava arrepiada quando via os olhos verdes grudados no seu rosto. Uma sensação de paz foi tomando conta dela, coisa que nunca tinha sentido. Não se largaram mais até o fim do baile, quando os galos pegaram a cantar e o novo dia desenhava as ruas e casas da povoação.
A moça se babava de felicidade.
Mas alguma coisa, lá no fundo de sua alma, parecia ameaçar o amor que brotava de repente. Não sabia o que era, embora sentindo a sensação angustiosa causada pelos pitos do pai e da mãe nos tempos de criança por coisas que não entendia bem. Nos olhos das pessoas percebia um jeito de recriminação, pronto a virar ralho e até desprezo. Fosse moça má e veria naquilo algum ciúme mal contido ou despeito de gente interesseira. Mas Picuxa, boa e simples, sentia apenas medo.
Quando o baile terminou, o moço educado foi se despedir. Prometeu visita no sítio onde ela morava e Picuxa viu que o moço lindo que nem santo gostava dela, só se interessava por ela, nem via as semostradeiras que se arreganhavam. Ao partirem no trote largo dos cavalos notou que até o pai e a mãe estavam diferentes.
Teve vontade de chorar. Cobriu a cabeça com o lenço, baixou o olhar para a estrada e botou as coisas nas mãos de Deus.
Em casa houve dias de tristeza quando a família se mostrava indiferente e fria. Picuxa sofreu e chorou. Caminhava solita pelo campo, passava horas sentada na beira da lagoa. Não entendia aquilo, tinha certeza de não ter feito nada errado. O moço bonito que nem santo estava sempre na sua lembrança e ela, mesmo sem saber porque, percebia ser ele a causa de tudo que acontecia em casa.
Um dia, afinal, o pai falou. Em três palavras ríspidas, dessas que não admitem resposta, decretou o fim do namoro mal iniciado. E o argumento final enterrou o assunto:
“É um alarifo!”
Humilde, a moça não retrucou à ordem paterna. Seus olhos mansos se encheram de lágrimas e ela sentiu que estava morta por dentro, mas não se revoltou e nem perdeu a compostura. Era o pai que mandava e decidia, tanto na escolha da rês para carnear, da roça a ser lavrada ou dos maridos para as filhas.
O moço corajoso tentou visitas. Recebido na sala pelo fazendeiro sisudo, acabou desistindo, pois a moça não aparecia. Uma vez diziam que ela tinha defluxo ou dor de cabeça; na outra que estava em casa de parentes.
Picuxa sofreu e chorou. A beleza da cabocla morena se suavizou, os traços ficaram um tanto severos antes do tempo. Solitária e silenciosa, simulava conformismo, embora sabendo que não poderia esquecer o santo que foi seu par efetivo naquele baile. Todos os dias se lembrava dele, mas a imagem doce se desfazia com as palavras ásperas do veto paterno:
“É um alarifo!”