Duas mulheres do mesmo nome gravitaram em torno do grupo de Monteiro Lobato na época em que ele liderava o meio cultural e literário do país. Talentosas e dedicadas às suas atividades, eram admiradas e respeitadas pelo que realizavam em favor da cultura e da educação nacionais. Ambas são muito citadas na obra literária de Lobato e daqueles que pertenciam ao grupo e com isso seus nomes se eternizaram
Guiomar Novaes (1896/1979) desde criança revelou extraordinário talento como pianista. Dedicou-se com empenho ao aprimoramento de sua arte e frequentou cursos no País e no Exterior. Tornou-se perfeita executora da música clássica para piano e fez longa carreira profissional no Brasil e no Exterior, apresentando-se com permanente sucesso diante das mais exigentes e sofisticadas plateias do mundo. Especializou-se na execução de Chopin e Schubert, em cujas obras foi considerada inigualável. Dizia Lobato que Guiomar Novaes e piano eram uma unidade, a mesma coisa, tanto que eles pareciam nascidos um para o outro. Residindo nas vizinhanças do escritor, comentava-se que ela serviu de inspiração para a personagem Narizinho das histórias infantis do taubateano. A obra de autoria dele evidencia a admiração pela artista. Ela faleceu bafejada pela glória, tendo recebido incontáveis prêmios, distinções e homenagens.
Guiomar Rocha Rinaldi (1886/1970) conquistou a gratidão dos brasileiros pela dedicação de uma vida inteira à educação, incluindo-se Lobato e seu grupo. Estudiosa, pesquisadora, observadora e bem informada, ela colocou em prática os mais modernos métodos de ensino, obtendo sempre bons resultados e colhendo os aplausos dos críticos e educadores. Foi também escritora produtiva, publicando obras de sua criação, adaptação e tradução de clássicos da literatura universal e livros específicos sobre puericultura, pedagogia, orientação e lazer para crianças. Suas obras se tornaram leitura obrigatória, em especial de quem mantinha filhos na sala de aula. Em sua homenagem, uma conhecida escola da Pauliceia foi batizada com seu nome.
Entre seus livros avulta um pequeno volume de 140 páginas que foi manuseado por gerações de mestres, pais e alunos. Trata-se de “Os Serões da Fazenda”, publicado por Valdemar Freire Editor, custeado pelo Governo do Estado de São Paulo e distribuído aos milhares nas escolas. (1934). Ilustrado pelos célebres cartunistas Villin e Belmonte, tem um aspecto visual agradável capaz de despertar a curiosidade de qualquer criança e também dos adultos. O pequeno livro tem sido apontado como inspirador de “Serões de Dona Benta”, de Monteiro Lobato, e no qual a velhinha proprietária do Sítio do Picapau Amarelo, sentada em sua cadeira de pernas serradas se põe a ler e contar histórias para os netos postados ao seu redor. D. Zelina Castello Branco, considerada das maiores encadernadoras nacionais foi quem me ofereceu um exemplar por ela mesma encadernado e que conservo até hoje.
O conteúdo do livro se desenvolve em ambiente rural, em uma fictícia fazenda do vovô onde tudo acontece e evidencia que a autora rememora esse meio do qual era originária. Aparece a casa da sede, casarão imenso, repleto de portas e janelas, cercado de áreas ensolaradas. Assim como foi a fazenda que pertenceu a Lobato na localidade do Buquira, hoje o município de Monteiro Lobato. Junto da casa está a palmeira imperial copiada pela ficção à realidade. Não tardam a surgir os extensos cafezais cujos pés verdejantes semelhavam soldados em formatura. A família de sapos que vive feliz no brejo, coaxando em conjunto como uma orquestra monótona e repetitiva. E, no entanto, o brejo produz arroz, muito arroz. O cavalo Pretinho, por todos estimado, troteia por ali, reluzente de gordo. As vacas produtoras de leite, as cabras e as ovelhas, os animais domésticos, as aves, os insetos, tudo aquilo que compõe uma grande fazenda, sem faltar o rio, o olho d’água e a lagoa em que os patos, os marrecos e os gansos se movimentam à vontade.
A vovó contadeira de casos não poderia faltar. Ela enumera figuras que ali vivem ou viveram. Apontou o Pedro Lombardi que passava rumo ao serviço. Aos nove anos de idade recebeu de presente uma enxadinha e logo começou a capinar os matinhos que cresciam aos pés dos cafeeiros. Trabalhou a vida inteira; era um herói do trabalho – disse ela. Existia o Chico-Chico, sujeito feio e narigudo, sério nos negócios, mas mentiroso incorrigível cujas lorotas corriam mundo. Nhá Tudinha, cabocla da casa que embirrava com o carneiro de estimação de vovó e um dia acabou “marrada” por ele e lançada contra uma cerca de arame. Havia ainda um morador que exibia enorme bócio e ficou conhecido como Papudo, objeto de admiração de todos. Tinha uma voz fininha e rouca que não parecia daquele homem alto e forte. Os papudos eram comuns na época, hoje não existem mais. Havia ainda a Tesourinha, moça hábil na confecção de trabalhos manuais, e o Ambicioso que levou séria lição por viver correndo atrás do dinheiro.
Vovó desfiava histórias sem fim, muitas delas extraídas do folclore e as crianças adoravam. Narrava o caso do cavalo sem cabeça, a ideia de colocar um guizo no pescoço do gato para alertar os ratos, a queimada de chifres secos para afastar aas cobras venenosas, as lorotas da raposa velhaca, o caso do leão e do camundongo, o lobisomem que assombrava os passantes, o caso da baratinha mal-humorada e outros tantos.
Nos dias ensolarados e de temperatura agradável vovó saía pela fazenda com os netos. Ministrava verdadeiras aulas in loco, cujos ensinamentos elas absorviam sem sentir. Mostrava a importância da conservação das florestas e das águas, descrevia os pássaros que voavam por ali, os peixes que observavam na lagoa, os insetos e suas finalidades, os animais silvestres, a variedade de nossa flora. Valendo-se de sua extraordinária memória, declamava trechos de poemas de autores nacionais, sempre relacionados ao meio campestre, despertando neles o amor pela boa poesia. Vinham à tona poemas de Catulo da Paixão Cearense (Luar do Sertão), do catarinense Luiz Delfino (Sertaneja), Paulo Setúbal (Tarde), Tomaz Galhardo (A Cigarra e a Formiga), “Minha Terra”, de autor desconhecido, e vários outros. Exalta sempre o valor da honestidade, do espírito público, da coragem e do patriotismo. Vovó deve ser feliz por criar netos que se tornaram bons cidadãos.
Como boa paulista, há belas páginas louvando o café, o ouro paulista, o Rio Tietê, hoje em lamentável situação, e, para concluir, a cidade de São Paulo.