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Balneário Camboriú
Enéas Athanázio
Enéas Athanázio
Promotor de Justiça (aposentado), advogado e escritor. Tem 60 livros publicados em variados gêneros literários. É detentor de vários prêmios e pertence a diversas entidades culturais. Assina colunas no Jornal Página 3, na revista Blumenau em Cadernos e no site Coojornal - Revista Rio Total.
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Vida Marvada

Ô vida marvada!
Num dianta quage nada!
Num paga a pena a gente se esforçá,
num paga a pena a gente trabaiá!

(Tonico e Tinoco)

Artulino Godinho, por apelido Siô Godó, cansou de viver. Quando acordava, muito cedo, todas as manhãs, olhava para o relógio e se aborrecia: estava na hora de levantar. As horas da manhã passavam muito depressa, ruminava. Mesmo contrariado, tinha que levantar porque ninguém pode passar o dia todo na cama. E recomeçava a chatice de sempre, excogitava de cara amarrada, arrastando as chinelas na direção do banheiro. Fazer a barba que teimava em crescer e crescer, com aparelhos cada vez piores, escovar os dentes, tomar banho, tarefas insuportáveis que vinham se repetindo há décadas. Não podia existir coisa mais aborrecida! Quantos anos de vida gastos naquilo! Nesses momentos, confessava para si mesmo que tinha inveja dos mortos. Eles estavam livres dessas chateações.

Em passos vagarosos, rumava para a sala de refeições. A mesa estava arrumada pela empregada e ele sentava diante de uma grande janela aberta que dava para o pátio. Enquanto comia, a mulher puxava conversa, tentando animá-lo, mas ele só respondia com resmungos. O capataz do sítio vinha conversar através da janela e ele se limitava a estender o pescoço na direção do outro, só falando o estritamente necessário. A mulher se irritava.

– Você tá ficando com o pescoço comprido! Por que não fala com o rapaz?

Godó engrolava uns grunhidos, enquanto mastigava, pensando que a mulher também era uma chata que vinha suportando há tantos anos. Suspirava fundo, fungando, imaginando como seria bom estar longe dali.

Mas ela insistia:

– Você tinha que responder a carta do gerente do banco, lembrou ela. – Respondeu?

Novo suspiro de puro cansaço.

– Me esqueceu! – respondia.

Enquanto a empregada retirava os talheres, ele preparava um palheiro, sovando a palha com a lâmina do canivete. Enrolava, acendia, tirava umas baforadas. Pelo menos aquilo ainda tinha gosto!

– Você sabe quantas sacas de milho o vizinho levou? – indagou a mulher.

Godó sabia, tinha acompanhado de longe o negócio, mas teria que pensar para lembrar com precisão e optou pelo mais fácil:

– Me esqueceu!

A mulher saiu se clamando porta a fora e foi consultar o capataz.

Não demorou a voltar fazendo anotações num pedaço de papel.

– O Aparício veio buscar o capado que comprou. Você se lembra qual foi o preço combinado? – voltou ela a perguntar.

É claro que ele sabia mas para responder teria que pensar e, pior ainda, falar.

– Me esqueceu! – foi a resposta.

Irritada, a mulher afirmou:

– Vou cobrar o que ele quiser pagar.

Godó nada disse. Levantou devagar, muito devagar, e saiu para o pátio em completo silêncio. Foi sentar na raiz do umbu que crescia no piquete, alojou-se na sombra e ficou olhando o panorama da campanha onde o gado pastava e ouvindo o farfalhar do arvoredo. O guapeca da casa se aproximou, farejando e fazendo festa. Deitou ao lado do dono, as patas estiradas, a longa língua para fora. Godó o afagou, passando a mão pelas costas e o cachorro pareceu gostar. Notou que num canto do piquete cresciam viçosos caraguatás verdes e espinhentos que ameaçavam se alastrar. Careciam ser cortados antes que invadissem o pasto. Pensou um pouco, encolheu os ombros.

– Num paga a pena! – concluiu.  

Não tardou a cochilar.

Acordou com o capataz sentado ao seu lado.

– Patrão, disse o rapaz, hoje cedo veio um peão do Coronel Lucidoro trazer uma reconvença. É para o patrão ir numa reunião no Pito Aceso. Coisa de política. Não quis acordar o patrão.

Godó esticou o pescoço na direção do capataz e encerrou o assunto:

– Num paga a pena!

Ara! Ara! Reunião de política, excogitou. Não hai nada mais aborrido! Fechou os olhos e voltou à madorna.

O tempo passou devagar, quase parando. A empregada foi até a porta e gritou:

– Siô Godó, o almoço tá na mesa!

Ele resmungou mas não se mexeu. Arroz, feijão preto, carne de galinha, mandioca ou batata cozida, ovo. Coisa mais chata, pensou. Mas, por via das dúvidas, levantou e arrastou as chinelas até a sala de refeições. Sentou-se diante da janela e a mulher reclamou:

– Não vai nem lavar as mãos?

Resmungando, levantou irritado e se dirigiu à pia.

– Me esqueceu, justificou-se.

Comeu muito pouco, beliscando aqui e ali, bebeu uns golpes de água do poço. Não disse uma só palavra.

Dirigiu-se ao quarto e deitou na cama, vestido como estava. Minutos depois a mulher entrou para falar com ele mas era tarde. Roncava.

Lá permaneceu a tarde inteira e foi rezingando que concedeu em jantar. Quase nada comeu e menos ainda falou. Fumou seu palheiro e se enfurnou no quarto a noite toda.

Assim eram os dias de Godinho, outrora sitiante próspero, ativo e dedicado aos negócios. Agora rompera relações com o mundo e se recusava a viver.

Preocupada, a mulher reuniu os filhos e resolveram tomar providências. Levar Godó ao médico da cidade parecia a medida adequada. No dia marcado, atrelaram o cavalo à charrete e encilharam outras montarias para os acompanhantes.

Resolutos, entraram juntos no quarto e acordaram Godó, explicando-lhe que o médico estava à sua espera na cidade. Ele amarrou a cara e se recusou a levantar. A mulher, com muito jeito, fez o possível e o impossível para convencê-lo. Irredutível, ele deu uns grunhidos, estirou-se na cama e murmurou:

– Num paga a pena! Puxou o cobertor e cobriu a cabeça, dando o assunto por encerrado.

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