“Eu me sinto triste ao sair de qualquer lugar.” HEMINGWAY
Depois de uma semana de luta no fórum e no escritório, Janary Messias se refugiava no sítio. Pequena propriedade, para os lados da Tupitinga, tinha o formato aproximado de uma bota, fazendo frente para a estradinha de chão batido e fundos para um arroio de águas límpidas e geladas que corria dentro de um mato fechado e verdejante onde cresciam pinheiros, imbuias, velhas erveiras de casca rugosa, bracatingas, caratuvas e muitas outras espécies de árvores nativas. Herança paterna, o sítio passara por muitas melhorias e oferecia razoável conforto. A casa da sede, construída no pé de um coxilhão, tinha longa área dianteira voltada para a estrada, avistando-se tudo que por ela transitasse e o portão da entrada. Peças amplas e espaçosas, claras e ventiladas, tinham um aspecto agradável, destacando-se a sala bem mobiliada e ornada de belos quadros nas paredes. Alinhados com a casa, erguiam-se o galpão, ao lado do qual ficava a morada do capataz, um pequeno paiol para depósito de materiais e ferramentas e, mais à frente, garagem, galinheiro, abrigo para ovelhas e cabras e chiqueiro de engorda. Tudo pintado de branco, dando ao conjunto um ar de limpeza e organização que muito agradava ao dono.
Pouco abaixo, à margem do riacho, havia um tanque retangular, escavado na terra, cercado por uma calçadinha de ladrilhos onde ficavam cadeiras confortáveis e guarda-sóis protetores. Alimentado por um olho d’água que escorria do alto, sua água estava sempre límpida e convidativa para um mergulho nas tardes de verão.
Rente à cerca do piquete ficavam os cochos em que o gado vinha lamber o sal ali espalhado. Janary gostava de observar os animais, roliços de gordos, que se enfileiravam diante dos cochos em rigorosa ordem, como se fossem ensinados.
Tão logo chegava, sempre acompanhado de Siá Nana, pretinha velha criada pelos avós e que administrava a casa da cidade, Janary fazia uma ligeira vistoria, proseava com o capataz e se punha à vontade, respirando com volúpia o ar puro e revigorante da campanha. Nos dias quentes mergulhava no tanque, bracejava e nadava, estirando-se depois em uma das cadeiras para o banho de sol. Quando esfriava, acomodava-se num canto da área ou na poltrona predileta da sala, afundando na leitura de seus amados livros. Segurando a cuia de chimarrão, sentia na palma da mão o calorzinho da água quente e se deliciava a cada gole da bebida. O silêncio reinante, só quebrado pelo pio de algum pássaro ou o mugir distante de uma rês, ia tomando conta dele e uma paz profunda invadia seu coração. Uma lassidão deliciosa inundava-lhe o corpo e toda a correria da semana parecia distanciar-se no passado de uma hora para outra. De onde estava, na sala ou na área, avistava o campo verde que se estendia a perder de vista, banhado pelo sol amarelo ou lavado pela chuva. Não existia sensação igual! – ruminava para si mesmo. O mate acabava encostado, o livro fechado, as pálpebras pesavam e um sono benfazejo tomava conta dele. Até que Siá Nana, com muita calma, o chamava para a refeição.
Nas permanências mais longas, fazia caminhadas pelo campo aberto e pelo mato, sentindo o frescor daquele meio sombreado e levando em sua companhia o Jasper, quapequinha da estima, vivo e ágil, que não o largava. Às vezes encilhava o cavalo favorito e visitava os vizinhos mais próximos, sentindo nas faces uma aragem tão suave que parecia uma carícia. Nas casas aonde chegava a recepção era sempre festiva e a prosa se estendia mansa e vagarosa porque lá o tempo escorria devagar. Retornando, pensava nas pessoas visitadas, a quem admirava porque conseguiam ser felizes com tão pouco enquanto ele que tudo tinha se via com frequência tomado pela inquietude e pela melancolia.
Por mais que procurasse evitar, também recebia visitas. Uma das mais frequentes era de Américo, peão antigo da fazenda do Coronel Gaspar, e que parecia farejar sua presença no sítio. Vinha montado numa égua ruça e ossuda, apenas com surrado baixeiro, sempre sorridente e feliz da vida. Embora desgastado pelo serviço duro e pela ausência de cuidados, o caboclo mantinha os traços do rapaz bonito que deveria ter sido. Cabelos e bigodes brancos, pele tisnada de sol, tinha os dentes perfeitos e um sorriso simpático. Janary gostava do caboclo e admirava seu jeitão franco e os dizidos do povo que usava nas conversas.
Chegando, amarrava a égua na cerca, tirava o chapéu de abas largas e subia pela escadinha sem a menor cerimônia. Quando caminhava, ouvia-se um som de pés arrastados, o que atraía a atenção para seu calçado. Ele cortava dois pedaços de couro com pelo e tudo, pouco maiores que os pés, e dobrava as beiradas para cima. Atava dois tentos finos, unindo as pontas, de maneira a formar uma espécie da sandália rústica com a qual se protegia. Exibia sua arte sem o menor constrangimento. E a bombacha, ou aquilo que fora uma bombacha, estava retamada de remendos, embora tudo nele parecesse limpo e lavado.
E a cena se repete.
O visitante se põe à vontade, depois das perguntas do costume, e relata a forma como o Coronel Gaspar trata sua peonada. Ganho ridico, comida pouca e serviço brabo. Cada um faz por três e o tratamento é bruto, com gritos e cara amarrada. Não permite que peão plante para si e mantenha animais de sua propriedade na fazenda, nem mesmo um casal de galinhas. Para ir à cidade se fornecer no armazém tem que ir a cavalo porque o patrão não permite o uso da caminhonete. É uma miséria! – concluí o caboclo, usando palavras que revelam um fatalismo conformado. Não chega a ser uma queixa, é a revelação de um fato, mas Janary se compadece da triste situação daquele homem rude e trabalhador, embora nada possa fazer exceto oferecer alguma ajuda. Como ele – pensa o advogado – existem milhões neste país.
Américo informa que uma família da vizinhança abandonou a terrinha que possuía e tudo o mais e se mudou para a cidade. O marido foi trabalhar como biscateiro e a mulher como faxineira em casas de família. Diante da surpresa do advogado, o peão decretou:
– Pra quem tá se afogando, até cabeça de jacaré parece bóia! – Deu uma risadinha curta e seca.
A conversa seguiu lenta. Janary perguntou como aqueles homens se submetiam a uma situação tão humilhante e o caboclo justificou:
– Não tem outro jeito. É melhor viver fedendo do que morrer cheiroso!
Nisto Siá Nana aparece na sala trazendo o cafezinho preto servido em canequinhas de porcelana, fumegante e cheiroso. Era uma especialidade dela, sempre gabada pelas pessoas, inclusive muitos figuraços. Voltaram em seguida ao chimarrão e o visitante por fim se despediu com um toque de pontas de dedos e desceu a escadinha esfregando a estranha sandália. Montou na velha égua, abanou de longe e pegou o caminho de casa.
Postado na área, Janary ficou observando o cavaleiro que se afastava no trote seco da montaria. Na imensidão do campo ele foi diminuindo, diminuindo, até se converter num ponto escuro no contraste com o acinzentado do céu do anoitecer.
Visitantes infalíveis nas paragens no sítio eram Quim Pitoco e sua mulher Siá Benedita, compadres do advogado. Ele havia batizado o filho mais novo do casal. Na juventude, Quim Pitoco fora muito falado pela valentia e pelas currumaças e fuzarcas que praticava. Um cuéra, um ventana, virado no quéaquilo! – murmuravam. No entrevero com um tal Rasgadiabo, numa festa do padroeiro, em São Simão, perdeu dois dedos da mão esquerda, vindo daí o apelido de Pitoco. Mais tarde, depois que se apaixonou pela Benedita, por apelido Nhá Dita, e com ela se casou, garrou juízo e cresceu na vida. Ajudado pelo sogro, comprou uma fazendola para as bandas do Pito Aceso, nela se aquerenciou, e com muito serviço, jeito para as breganhas e alguns cobres postos a juros se parou de rico.
Chegando ao sítio, deixava os cavalos bem aperados na sombra do galpão e rumava para a casa do compadre. Caminhava sempre na frente, com a mulher atrás, nunca ao lado. Levava num dos braços um pessuelo, à moda de quem carrega alguma peça de roupa, e que Janary comparava à pasta dos advogados. Nele o caboclo guardava seus papéis e dinheiros, além do presentinho que sempre ofertava ao compadre: um queijo crioulo, algumas espigas de milho verde, um pouco de pinhão ou outros afagos.
Tão logo sentava, depois de se livrar do chapéu grande, enxugava o rosto num lenço carijó que carregava embolado no bolso. Vestia uma espécie de conjunto acinzentado com a parte de cima parecendo túnica. Esparramava-se numa poltrona, estirava as pernas enfiadas em botas pretas e reluzentes, e iniciava uma prosa lerda e comprida que provocava leve sonolência no dono da casa. Ele ficava lamentando no íntimo o tempo perdido que poderia ser empregado em alguma coisa mais útil e agradável. O chimarrão corria, Siá Nana servia o cafezinho (que ela chamava de goles) e o tempo preguiçoso se estirava devagar, devagar, quase parando, enquanto Quim falava, falava e falava num nhenhenhém perlongado. Benedita, por sua vez, entrava pela cozinha e se entretinha num diz-que-diz sem fim com a cozinheira.
Com imenso alívio Janary percebia que a visita chegava ao fim e o casal se preparava para sair. Mas isso não significava que as coisas acontecessem de pronto; também demoravam uma eternidade, até que Quim se retirava na frente e levando a mulher na rabeira, o inseparável pessuelo no braço. Janary respirava fundo, contemplava o casal cruzando o portão e se perdendo nos carreadores campeiros. Uf!
Por desfastio, tirava as roupas e se jogava no tanque para um banho refrescante. Do corpo e das ideias. A água fria o livrava das cracas deixadas por tantas conversas aborridas.
O tempo implacável passa. É necessário retomar a luta, voltar ao escritório e ao fórum. Siá Nana tem tudo pronto, arrumado no capricho, e Jasper, pressentindo a viagem, faz círculos em redor do dono. Partem no carro lotado de produtos do sítio, legumes, frutas, pinhões, leite. Ao cruzar o portão da entrada, Janary contempla o sítio numa visão de conjunto, como numa fotografia panorâmica. O campo verde ondulando nas coxilhas e canhadas, o mato compacto farfalhando ao vento, o riacho com suas águas límpidas e cantantes e o conjunto das benfeitorias brancas reluzindo ao sol do entardecer. A tristeza ameaça invadir-lhe o coração mas ele reage ao se lembrar de que muito em breve voltará e o sítio estará à sua espera. Lembra-se de que um de seus escritores favoritos sentia tristeza ao deixar qualquer local. A tristeza da partida.
Põe o carro em movimento, procura varrer outros pensamentos e se fixa no amanhã.