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A MULHER PIRATA NOS MARES ASIÁTICOS

Dalton Delfini Maziero
Dalton Delfini Maziero
Historiador, escritor, especialista em arqueologia e explorador. Pesquisador das culturas pré-colombianas e história da pirataria marítima.
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Existe uma enorme distância entre a pirataria ocidental e a asiática, e por consequência, na forma como ela ocorre nestas distintas regiões. É preciso resistir emocionalmente às histórias românticas e glamourização que tomou conta da pirataria caribenha da época dos bucaneiros, e da qual tendemos a replicar no cenário asiático, como se fosse uma pirataria “verdadeira”. 

Evidenciar os fatos históricos dentro do mundo da pirataria é uma tarefa árdua. Resistir ao apelo popular de histórias fascinantes como a de Ching Shih, a Rainha dos Piratas ou de Lai Choi San, a Mulher Dragão requer a paciência de afastar os incríveis feitos alcançados como mérito de uma só personagem. Na pirataria asiática, o fato de mulheres ascenderem a posições de tamanho poder, já é um indicativo que as engrenagens sociais ali se desenrolam de modo diferente. Sendo assim, torna-se imperativo afastar a perspectiva da pirataria ocidental, quando adentramos no mar da China, mar das Filipinas, Golfo da Tailândia, Indonésia, Malásia, Japão e demais arquipélagos que compõem esse intrincado e recortado litoral asiático, que tanto ajudou no engrandecimento da pirataria ao longo da história até momentos atuais. Aquele foi, definitivamente, outro mundo. Em especial, voltamos nossa atenção à região autônoma de Macau, que desde o estabelecimento português (1557) já atuava como centro comercial multicultural, funcionando como porto de entrada de chineses, japoneses e europeus. A pirataria se estabeleceu naquela região muito antes da chegada dos portugueses, mas foi com o crescimento da cidade – em especial no XVII – que ela definitivamente se tornou um paraíso sem lei para bandidos, traficantes e afins. 

Contudo, foi justamente essa efervescência comercial e as amplas vantagens geográficas da região de Macau – salpicada de ilhas, rios e abrigos naturais – que permitiu essa mistura de atividades clandestinas com outras legais e legítimas, como a pesca por exemplo. Talvez Macau seja um exemplo a altura de Port Royal (Jamaica), que no XVII tornou-se também um polo da pirataria, contribuindo para o crescimento e enriquecimento da cidade pela ação de práticas clandestinas, pois a presença de piratas e marinheiros exigia a abertura de bordéis, tabernas, salões de jogos e consumo de ópio, entre outros estabelecimentos que alimentavam a presença dessas pessoas. 

Se tratando da pirataria feminina – portanto uma história de gênero – na Ásia, não era incomum encontrarmos mulheres trabalhando em frotas piratas, muito antes da chegada dos portugueses. Pois ao contrário do que possa parecer, naquela região a pirataria nada tinha a ver com aventuras em ilhas paradisíacas ou senso de liberdade a ser conquistado. No mundo asiático, a pirataria era mais prática, mais próximo de um negócio culturalmente institucionalizado; e como tal, dispunha para sua sobrevivência de uma série de acordos, concessões, hierarquias e atividades paralelas que deveriam ser seguidas à risca para que o negócio prosperasse. 

Se mulheres alcançaram de forma notável o posto de comando em alguns barcos piratas, cercadas de poder, honra, riqueza e respeito; isso ocorreu em parte por mérito pessoal e uma admirável capacidade administrativa para tal. Mas também tal posto foi alcançado porque as engrenagens sociais na Ásia permitiam a mobilidade social de uma mulher no estrato em que se encontrava a pirataria: um poder paralelo. Ao contrário do ocidente, na China dos séculos XVIII e XIX era bastante comum as esposas acompanharem seus maridos a bordo de navios, sejam piratas ou não. E uma vez lá, desenvolviam atividades árduas e pesadas como a de qualquer marinheiro. Especificamente em navios de atividade pirata, as mulheres quando necessário lutavam de forma feroz e brutal, para defenderem suas vidas, de seus maridos ou de sua frota. 

A questão da mobilidade social feminina torna certas personagens asiáticas quase heroínas aos nossos olhos. No caso específico de Ching Shih (1775-1844), presenciamos em apenas 11 anos de atividades, sua ascensão como prostituta à capacidade estratégica de derrotar a força Imperial Chinesa! Rica e poderosa, foi também um dos raros exemplos de sabedoria além de seu tempo. Parece não existir no mundo asiático, oposição masculina à ascensão feminina no estrato da pirataria. Muito pelo contrário, elas eram vistas como esposas, aliadas e parceiras de negócios e de luta. Contudo, representaram também um ponto de desafio as tradições conservadoras da doutrina confucionista, que imperavam na China desde o século VI a.C. 

Mas é preciso atentar que essa mobilidade social feminina não ocorria em todas as esferas sociais. Para aqueles que estavam subordinados ao poder Imperial, as regras eram diferentes, rígidas e sedimentadas. Embora fosse comum em todas as esferas a ascensão social da mulher através de um bom casamento – assumindo a posição de poder do marido quando este morresse –, somente nas subclasses da ilegalidade, como a pirataria e o contrabando, as mulheres podiam galgar postos de liderança pelos próprios méritos. Foi ali, fora da esfera oficial do governo, que as pessoas foram valorizadas pelos seus atos, habilidades em combate, sagacidade ou capacidade administrativa. O reconhecimento e respeito alheio nessa esfera era recompensada verdadeiramente com poder e riqueza, independentemente de seu gênero. 

Contudo, existem algumas verdades universais sobre a pirataria. A principal delas: tornar-se um pirata é mera questão de oportunidade. Piratas no universo social chinês eram basicamente formados por pessoas jovens, pobres, com pouca ou nenhuma chance de ascensão social. Em sua esfera de submundo, aceitava-se pessoas não chinesas, que depois dividiam o resultado de seu saque, nem sempre de modo igualitário. Implícito nas linhas desse curioso depoimento – embora aqui exista efetivamente uma punição – podemos também anotar que, do ponto de vista secular, a atividade da pirataria na Ásia não tem sido sistematicamente combatida e reprimida pela força de nações ou estados combinados por períodos prolongados, como ocorreu na pirataria do Mediterrâneo ou mesmo na América do Norte. No mundo asiático, essa atividade embrenhou-se longamente pela aculturação de toda uma região. 

Assim, ao apresentar as proezas individuais de mulheres na história da pirataria asiática, devemos ter em mente que, embora seus atos sejam de excepcional capacidade, eles foram até certo ponto habituais dentro dos costumes locais e ações permitidos consensualmente na esfera social em que se encontrava a prática da pirataria. Muitas delas, como Lai Choi San, desde cedo acostumadas ao mar, entendiam essas ações como uma forma tradicional de se ganhar a vida. Roubo, morte, sequestro, extorsão… Eram práticas e oportunidades que a vida oferecia, para quem soubesse se aproveitar delas. 

Dalton Delfini Maziero é historiador, escritor, especialista em arqueologia e explorador. Pesquisador dos povos pré-colombianos e história da pirataria marítima. Visite a Página do Escritor.

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