A pornografia criada por inteligência artificial (IA) já é realidade, com sites especializados ocupando os primeiros lugares de buscas na internet.
Humanos com genitálias gigantes, sexo com centauros e lobisomens, personagens de desenho animado nuas, relações no gramado de estádios lotados e mais excentricidades para todos os gostos são exibidas nas páginas. Há também a possibilidade de criar a própria peça do zero, a partir de instruções em texto, com recursos de personalização pagos.
O realismo e a oportunidade de caracterização inéditos proporcionados pela IA podem ser ferramentas potentes para a exploração de fantasias e autoconhecimento, afirmam especialistas neste Dia do Sexo (6/9). Por outro lado, a nova forma de consumir conteúdo erótico esbarra em riscos à saúde sexual e psíquica, dilemas éticos e uso indevido de dados.
A IA replica dinâmicas antigas da pornografia. Mulheres são as mais expostas, com rosto e corpo inteiro estampando as imagens. Figuras masculinas só despontam em fotos com a temática homossexual.
Um portal analisado pela reportagem proíbe o uso de deepfake, tipo de montagem realista com rosto de pessoas reais. O site também pergunta se o usuário é maior de idade, mas não deixa claro qual modelo e dados são utilizados para as produções.
Porém a delimitação entre conteúdo autorizado ou não é questionável. A reportagem encontrou peças sexuais em que mulheres retratadas eram similares à cantora pop Billie Ellish.
A lei brasileira ainda não prevê punições específicas para a produção de deepfakes (esse tipo de produção é enquadrada como crime de injúria ou punida por meio da legislação que trata de crimes sexuais). Há dois projetos de lei no Congresso, um de autoria do senador Chico Rodrigues (PSB-RR) e outro da deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ), que tratam do assunto.
O TSE (Tribunal Superior Eleitoral) definiu a regulação do uso da inteligência artificial nos contextos eleitorais e a vedação absoluta de uso de deepfake na propaganda eleitoral para as eleições de 2024.
“Se falamos de personagens que não existem, com traços misturados aos de pessoas reais, não temos regulações capazes de dar conta”, afirma Nina Santos, pesquisadora em desinformação e diretora do Aláfia Lab.
É essencial saber a origem e a qualidade do tratamento dos dados usados para treinar IAs de tais produtos, de acordo com a especialista. A própria plataforma deve deixar isso claro, porém, nos sites analisados pela reportagem não havia essa informação.
Outra preocupação levantada é o impacto da pornografia customizada no sexo da vida real. Apesar de a reportagem ter encontrado imagens de corpos fora do padrão entre as criações, a vasta maioria remete ao sexo heterossexual, com figuras fálicas predominando e corpos femininos em posições de submissão.
Não há dados sobre o tipo de usuário dessas plataformas.
“IA é uma demanda que não vai retroceder e o consumo tradicional de pornografia está em xeque”, segundo Maycon Torres, professor de psicologia clínica na UFF (Universidade Federal Fluminense).
Tais plataformas podem ter algum efeito positivo por proporcionar a exploração de fantasias e da sexualidade de usuários, diz o especialista. Por outro lado, a personalização excessiva poderia aprofundar ainda mais problemas como o vício a pornografia.
“O uso pode causar isolamento, trazendo problemas para relacionamentos. Não conseguir exercer a sexualidade sem esses recursos é sinal de alerta”, afirma.
Mais jovens têm recorrido à iniciação sexual por meios virtuais para escapar de rituais difíceis, mas naturais, do mundo real, de acordo com Carmita Abdo, psiquiatra e coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade da USP.
“E quando ele entra em contato com a realidade, não é nem um pouco sedutor, é desestimulante. Veremos cada vez mais o sexo solitário”, afirma.
A especialista é contra a “demonização” da ferramenta, que poderia ser usada para o autoconhecimento. A chave, diz, é empregar a tecnologia para otimizar a experiência sexual, e não embasá-la.
“Ela pode deixar a fantasia voar, criar descobertas do que nem se imaginava gostar, e fazer com que o jovem vá para o mundo real mais instrumentalizado. Tem chance de ser um complemento fenomenal”.
Se, antes, usuários dependiam do que era lançado por produtoras da indústria pornográfica, a tendência mudou com a popularização de plataformas como o OnlyFans, segundo Lorena Caminhas, doutora em ciências sociais e pesquisadora de gênero e mídia na USP (Universidade de São Paulo). O mercado erótico tem passado a priorizar a proximidade entre consumidor e produtores de conteúdo.
“O consumo cada vez mais agudo de conteúdo personalizado é canalizado à IA”, diz.
Para a pesquisadora, o uso indevido de dados de criadores para a alimentação dos modelos coloca em risco a estabilidade do modelo de negócio construído até então, deixando trabalhadores do setor desarticulados e em posição de desvantagem.
“O que a IA faz é produzir conteúdos fora dessa relação comercial consentida entre criador e consumidor”, afirma.
ESPECIALISTAS DÃO DICAS PARA FUGIR DO VÍCIO EM PORNOGRAFIA
– Observe a quantidade de horas dedicadas ao consumo, bem como se o tempo está aumentando;
– Repare se você parou de fazer outras atividades que gostava para se dedicar à prática;
– Avalie se você é uma pessoa propensa a outros vícios, como bebidas, compras ou comida;
– Se sentir que a situação está fora de seu controle, procure ajuda profissional.