Arapongas da ditadura militar tentaram desqualificar a primeira Carta aos Brasileiros, lançada em 1977 na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, mostram documentos dos órgãos de repressão política guardados no Arquivo Nacional. Um dos relatórios produzidos sobre o evento, uma “Apreciação Sumária”, feita em 12 de agosto daquele ano por analistas do Serviço Nacional de Informações (SNI), diz que poucos docentes importantes assinaram o manifesto. No texto, os agentes atacam especialmente o professor Goffredo da Silva Telles.
O documento dos juristas, sob o governo do general Ernesto Geisel, pediu o fim do regime autoritário pós-1964 e a redemocratização do País. A memória desse episódio histórico tem sido evocada porque, em 11 de agosto, aniversário da criação dos cursos jurídicos no Brasil, será lida na mesma faculdade uma nova carta. Dessa vez, o objetivo será defender as urnas eletrônicas e o respeito ao resultado das eleições. Mais de 600 mil pessoas já a assinaram.
Em segundo lugar nas pesquisas eleitorais, o presidente Jair Bolsonaro (PL) tem criticado as urnas e feito ameaças. Opositores apontam discurso golpista, o que ele nega. O presidente reagiu negativamente ao novo manifesto: “Não precisamos de nenhuma cartinha”.
Investida
Em 1977, os arapongas da ditadura investiram contra os autores do manifesto. “A leitura dessa ‘carta’, à primeira vista, em razão do grande alarde feito pela imprensa escrita e falada, deu a impressão de que se tratava de um ato oficial organizado pela direção daquela escola (…)”, dizem. “Na verdade, o documento em apreço, de mera conotação política, não teve o apoio maciço, senão de minoria inexpressiva (conquanto ativa) da congregação da referida academia de direito. Com efeito, dos vinte e cinco professores titulares da Faculdade de Direito, apenas seis assinaram a ‘Carta aos Brasileiros’.”
O documento do “Serviço” aponta os professores. Além de Goffredo, cita José Ignacio Botelho de Mesquita, Fábio Konder Comparato, Dalmo de Abreu Dallari, Irineu Strenger e José Afonso da Silva. Segundo o texto, dos 50 livres-docentes, apenas quatro assinaram a carta: Modesto Carvalhosa, Ignácio Silva Telles Júnior, Miguel Reale Júnior e Geraldo Ataliba.
O texto também acusa Goffredo de ter passado fascista: “O professor Goffredo da Silva Telles, egresso da extinta Ação Integralista Brasileira, transformou-se num cristão-novo do liberalismo político, mas não teve o apoio da maioria dos seus colegas (…)”. A AIB fora extinta em 1937. A referência a Goffredo era um exagero proposital contra o mais conhecido ativista da carta.
Agentes do SNI tinham texto antes da leitura
Documentos guardados no Arquivo Nacional mostram que havia motivos para que os juristas autores da Carta aos Brasileiros, de 1977, pedissem o fim da ditadura. Há em relatórios indícios de que os articuladores do documento foram rastreados por espiões do regime militar.
O Encaminhamento 247/115 da Agência São Paulo do Serviço Nacional de Informações (SNI), de 8 de agosto de 1977, por exemplo, encaminha cópia da carta, horas antes da leitura. O texto, diz o agente, era distribuído pelo jurista José Carlos Dias. Já a Informação N.º 248/30/77 aponta Dias, Almino Afonso e Flavio Bierrenbach como colaboradores do manifesto.
Um dos signatários da atual Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito e ex-ministro da Justiça, Dias conta que a ideia de escrever a carta de 1977 surgiu em almoço com Afonso e Bierrenbach. “Resolvemos que era necessário fazer um documento para ser lido no pátio (da Faculdade de Direito)”, disse. “Escolhemos o professor Goffredo (da Silva Telles) para ser o redator dessa carta.”
Segundo o ex-ministro, Goffredo era “um dos maiores professores” da unidade da USP. Escreveu o texto, que recebeu algumas modificações dos articuladores, antes da leitura. O ato reuniu 2 mil pessoas.
O engajamento de Goffredo na carta pode ter lhe custado mais vigilância. No Informe 7802/31, de 11 de novembro de 1977, da Agência Central do SNI e classificado como confidencial, o nome do jurista é o segundo citado ao descrever um ato em memória do jornalista Vladimir Herzog, assassinado sob tortura no DOI-Codi de São Paulo em 1975.
O SNI viu o ato como “propaganda adversa” inadmissível. Ironicamente, vários documentos da repressão sobre a carta traziam no pé um carimbo que dizia: “A Revolução de 64 é irreversível e consolidará a democracia no Brasil”.
(Wilson Tosta e Marcelo Godoy/AE)