A 13ª edição do Festival da Canção de Balneário Camboriú teve como vencedora a canção ‘Filhos de Nero’, composta pelos músicos Matias Ardanz e Gilson Oliveira, o Gil, e interpretada pela peruana Nicole Ruju.
A final foi no sábado (30) e o trio conquistou o prêmio em dinheiro de R$ 28.423,17.
Nesta semana, o Página 3 entrevistou Matias e Gil, que dividiram o palco com Nicole, sobre o processo de composição e também a vitória no Festival.
Acompanhe abaixo.
JP3) Como foi o processo de composição da música vencedora? De onde veio a inspiração para criar essa canção?
Matias – Tivemos nestes últimos meses uma sequência de episódios climáticos extremos, entre eles a maior seca dos últimos anos e um número sem precedentes de queimadas. Como biólogo, que acompanha mais de perto as questões ambientais, fiquei muito impactado e estava conversando sobre isso com o Gil, um amigo de longa data, que comentou que é um tema que valeria uma música. Concordei na hora e daí surgiu a ideia do tema da música. A partir daí, o Gil, inspirado em nomes da música da América Latina dos quais também sou fã, como Mercedes Sosa, Silvio Rodriguez e Julieta Parra, entre outros, começou o esboço da melodia e levada que fomos trabalhando em conjunto.
JP3) O que motivou vocês a inscreverem essa música no Festival da Canção? Já tinham participado do Festival em outras edições? Se sim, como foi a experiência anterior?
Gil – Assim que surgiu a ideia pra esta música no começo de outubro – sim, muito, muito recente – já pensei logo no Festival da Canção de Balneário, pois participei da 12a edição no ano passado, e não consegui ir para a final, e desde então quis muito poder voltar. Podemos dizer que essa música foi feita para o festival, pois se não houvesse a data final de inscrição, talvez não tivéssemos terminado a música até hoje (risos). Aliás, uma curiosidade interessante sobre a música é que eu terminei de gravar a demo da inscrição minutos antes do horário limite e submeti a inscrição faltando uns 5 minutos. Foi na base da emoção desde este momento.
JP3) Como foi a escolha da Nicole Ruju para interpretar a canção? Qual foi a sensação de ouvir a música sendo interpretada no palco?
Gil – No ano passado, como havia comentado, participei do festival com uma música feita em parceria com a Eliz Bueno, uma musicista e intérprete catarinense maravilhosa, e o Sandro Ornelles, outro compositor que admiro muito, e naturalmente pensei na Eliz como intérprete para a canção assim que a música foi selecionada. Porém, como ela já tinha aceito o convite de outro compositor para se apresentar no festival, ela gentilmente declinou, mas ao ouvir a ideia da música e as referências, sugeriu a Nicole e me passou seu contato. Quando vi os vídeos dela nas redes, fiquei admirado e vi que ela seria a pessoa ideal para a canção. Outra curiosidade: ela ao receber o convite acabou também dizendo que não poderia, pois estava muito atarefada. Fiquei sem chão e me vi tendo que cantar no festival – o que seria PÉSSIMO pra mim e principalmente para o público (risos). Porém, uma voz me disse alguns dias depois para insistir, e aí ela acabou topando! Neste momento, comecei a acreditar que iríamos competir pra valer nesta edição. Sobre ouvir ela no palco, posso dizer que fiquei de boca aberta assim como o público. Já tinha ficado impressionado nos ensaios, mas no palco ela levou a interpretação para um nível surreal e fui arrebatado juntamente com público ao ver de camarote essa performance incrível.
JP3) Como foi receber a notícia da vitória no Festival? Qual foi a reação de vocês no momento do anúncio?
Matias – Foi uma sensação indescritível. Ficar em 1º lugar em um festival tão importante e tradicional como este, com artistas tão incríveis e talentosos concorrendo, foi um feito enorme e que nos deixou muito emocionados. Desde a semifinal já estávamos ouvindo muitos elogios, e por isso, ao ir para a final, conversávamos sobre talvez ficar entre os 5 primeiros, visto a quantidade de comentários positivos. Quando a música ganhou o prêmio de melhor arranjo e a Nicole ganhou como melhor intérprete, começamos a acreditar que o top 3 também era possível, mas 1º lugar era realmente um sonho. Ao ouvir o anúncio da vitória pulamos, choramos, gritamos.
JP3) O que essa vitória representa para a carreira de vocês? Existe algum plano para trabalhar mais nessa música ou em outros projetos?
Gil – Ainda estou processando tudo o que ocorreu. Parece que uma hora vou acordar de um sonho. Esta é a primeira vez que sou premiado em festivais desde comecei, há 2 anos, não somente como a melhor canção, mas também como melhor arranjo. Certamente é um marco que irá ajudar a projetar minha carreira e espero que abram outros trabalhos de composição, arranjo e produção musical. Sobre os próximos passos, um dia após a premiação, Nicole disse: “Essa música precisa de uma versão de estúdio, hein”. Quem sabe a gente não consegue viabilizar a produção dela? No que depender de mim, vou fazer de tudo para conseguir os recursos para fazer isso acontecer.
JP3) Como vocês sentiram a recepção do público durante a apresentação?
Matias – Apesar de estar muito concentrado e conectado com a música durante a apresentação, pude perceber que o público estava impactado com a música e com a performance da Nicole. Os aplausos calorosos puderam confirmar isso. A interpretação dela foi algo que tocou e arrepiou todos que ouviram e assistiram, inclusive eu enquanto tocava.
JP3 – O espaço fica aberto para vocês.
Gil – Acho importante comentar também um pouco da letra. Quando eu e o Matias começamos a pensar na problemática ambiental, nos demos conta que não tem como falar disso sem tocar a questão dos povos originários. Então ao avaliar meu conhecimento neste tema fiquei abismado com minha total ignorância. Acho que como a maioria das pessoas, me vi limitado com o conhecimento folclórico ensinado nas escolas no Dia do Índio que não aborda o tema como necessário. Então na minha inquietude comecei a pesquisar sobre o tema, e uma pessoa querida próxima, a psicanalista e bacharel em letras Tereza Azevedo me recomendou a leitura do livro a Queda do Céu, do xamã yanomami Davi Kopenawa e Bruce Albert que trata da cosmologia e cultura do povo yanomami e escancara como foi o contato com o povo branco da perspectiva indígena. Inclusive o fato deste livro de valor inestimável ter sido escrito por um francês e publicado inicialmente na França para depois vir para o Brasil, mostra o total descaso que temos com o tema.
Ler o livro foi ao mesmo tempo um soco no estômago e uma doce jornada de iluminação a este ângulo histórico por mim ignorado até então. A partir daí comecei a ouvir podcasts com outras lideranças indígenas como o Krenak para me aprofundar no tema. Pra finalizar, o nome Filhos de Nero remete ao Imperador romano Nero que foi alcunhado como louco e queimou Roma e retrata os europeus que aqui chegaram com sua “fumaça de epidemia” (trazendo inúmeras doenças), como diz o Davi Kopenawa, e destruição em favor aos seus interesses pessoais. Este processo de depredação ocorre sistematicamente desde a chegada dos portugueses até hoje, e agora vemos que a natureza está cobrando a sua conta.
Espero do fundo do coração que esta música e o falar dela consiga fazer o máximo de pessoas possíveis refletirem e se aprofundarem nas questões ambientais e dos povos originários, pois é um tema urgente.