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Balneário Camboriú
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Seu Nilto: A tarde se torna pequena pra tanta história

O Página3 publica todos os anos entrevistas com os antigos da praia. Essa foi publicada em julho de 2020. Confira a memória. 

Seu Nilto, pescador a vida toda, criado no Estaleiro

Seu Nilto ou Eronildo Amado Correa nasceu em Bombinhas. Não conheceu a mãe, com 3 dias de vida ganhou nova família. Aos 7, 8 veio de muda pro Estaleiro e já aprendeu a pescar.

aqui Vó Maroca foi sua mãe 
aos 17 ‘caiu no mundo’
pescador e cozinheiro de barco
do mar sabe de tudo
peixe rede vento
pesca e roça

casou com Dona Julia
muito trabalhadeira ela
depois apartou-se
faz tempo já, muitos anos
vivem na mesma rua
onde é tudo filho

muitos filhos
se fossem vivos 16
mas hoje só nove,
e netos, bisnetos,
já vem mais um aí

trinta anos embarcado

do porto do mar de Santos
ao Rio Grande do Sul
eu conheço igual
essa minha estrada aqui

eu gosto de perguntar

onde é que tu mora
ah em tal lugar
mas tu é natural?
às vez a gente tá conversando
com um primo da gente da família
esses dias fui numa loja em Balneário Camboriú 
quando olhei nos olhos da moça pensei

essa aí é minha prima

desculpa perguntar
mas tu é correa?
tu é neta do paulo correa?
teu avô comigo é primo legítimo

tinha família muito grande

na barra de Camboriú
família Correa, muito grande
e agora aqui né
nessa rua é tudo filho
tem a Mara, a Nana, a Jucélia lá, 
se fosse vivo era só 16, 
ficaram só nove

Foto Flávio Fernandes

contava nos dedos

de primeiro a gente contava no dedo
o pessoal do Estaleiro
tem turista aí
de 20 anos atrás que conheço
a metade é paulista,
mas se vai lá, na cidade de São Paulo,
não falta gente, nem faz diferença

nasci em Bombinhas
vim pra aqui garoto
com 9 anos de idade

quando falo pra turma
que não sou daqui
eles perguntam
mas quantos anos tu tem
setento e oito
ah, é natural do Estaleiro

aqui casei, aqui veio
essa linharada de família 

andei por todo lugar do mundo

mas não esqueci do Estaleiro

Foto Flávio Fernandes (livro Rodar do Engenho)

peixe e roça, era só o principal, meu pai tinha engenho de farinha

de lá do pé do morro,
lá do Pinho nós chamava
até os Canudo
só tinha uma 
família pobre
duas
porque de resto
todo mundo tinha engenho
de farinha
e engenho
de fazer açúcar

começava lá de baixo
Enésio tinha, meu pai tinha, 
Napoleão tinha (…)

aqui o Gervásio tinha, Natalício,
João Venâncio tinha, Pedro Venâncio tinha, 
pai do Teca tinha (…)

hoje ninguém sabe o que é uma prensa

um tipiti ou como se faz uma farinha
só sobrou um em Taquaras

Foto Caroline Cezar

tudo tudo tudo
que for de pesca
for de peixe
for de mar

eu fui numa condição de um mar
um mestre que eu trabalhava, o Carlinho
um dia nós tava assim de tarde,
o tempo bom, mar manso
ele chegou pra nós e disse
rapaze, cês sabem o que é uma palavra ‘derive’?
derive é um barco à rola, perdido, sem rumo
porque a nossa sonda parou de acusar
nós tamo em 
quatro mil seiscentos e quinze metros 
de profundidade

é água

no dia que nós fomo viajar
de lá pra cá
deu 113 horas de viagem pra chegar em Itajaí

mas o senhor nunca teve medo de pegar um tufão?
acho que naquele tempo não dava esse tipo de coisa
como deu aí
deusolivre se pega um bocado de barco
desaparecia que ninguém via
perdi alguns companheiro meu
que já morreu no mar
e eu fico ainda aí jogado nas trégua
não é o dia né

uma coisa que eu fico 
meio revoltado que tem 
quem não goste
é que antigamente
tinha dois dono de rede aqui
hoje na pesca não tem um nativo do Estaleiro
em Taquaras ainda tem as heranças dos antigos
no Estaleirinho tem o Lindo que é um antigo
não é dele mas cuida daquilo tudo ali
Laranjeiras depois de muito tempo
botaram rede, que já era do avô dele
aqui tinha que ter um tradicional 
que nasceu, viveu, conhece
uma herança

remédio de cobra

tinha a Dona Osória
que fazia remédio de cobra
eu já fui picado
ela cozinhou um ovo bem cozido
e botou a gema ali
ficou verde

se tivesse uma grávida na casa
pra fazer a cura tinha que sair

vinha gente de tudo que é lugar
pegar remédio com ela

aprendi com ela

janela aberta

a gente chamava Dindinha
abro a casa cedo
em casa fechada
a doença apodrece
passava lá
cinco e meia da manhã
e as janela tudo aberta
aqui faço assim até hoje
pode passar pra ver

ela benzia
vó Loló também

menino que sabe muito

tinha que pegar os filhos
pra aprender um pouco disso aí
senão daqui a pouco ninguém sabe
precisava uma escola
desde menino
pra aprender esse saber
quem desses menino
sabe fazer um nó de pesca?

é como aquela música
que diz
“menino que sabe muito
quero ver tu me dizer
quem era você no mundo
antes do teu pai nascer?”

nem mais pedir a benção
nós não ia dormir
uma noite sem pedir a benção
de pai, de mãe
via a vó e pedia a bença

Foto Flávio Fernandes (livro Rodar do Engenho)

morro do boi

quando vim pra aqui
aquela estrada nossa que 
chamamos morro de velho
tinha que sair de manhã
um pra arrumar o caminho
pra de tarde levar uma 
coisinha pra vender
e não passava dois carros de boi
um tinha que ficar na beirada do mato
pro outro passar

pra vender
levava até lenha
inteira, dois metros, três metros
uns anos depois já levava cortada
ficava mais fácil
uns não tinha machado

e vendia

um saquinho de feijão
cachinho de banana
cafezinho seco quando colhia
peixe saía um monte 
cercou, já tinha que dar jeito
levava pra fora e lá tinha comprador
caminhão fui conhecer aqui dentro 
depois dos 25 anos de idade

não tinha sofrimento não

acho que hoje dá mais doença
que aquele tempo
pessoal não sabia o 
que era uma farmácia
era tudo remédio caseiro
e garrafada e benzedura
e garrafada e benzedura
hoje é farmácia e a doença
tá cada vez pior

não comia nada de coisa

nem tinha geladeira né
plantava trazia dali já comia
arrancava pé de aipim
cozinhava e comia
pegava um repolho
uma galinha comia com
um ano e pouco, dois anos
hoje com três meses
tá comendo a galinha
que saúde tem aquilo ali né
eu não me conformo quando
alguém diz que hoje tá melhor
não tinha orgulho, nada

os mais velho nasceram
tudo em casa
há uns 40, 35 anos
nascia tudo em casa 
com parteira
minha sogra era uma parteira
Sebastiana, mãe da Julia
adespois a Vó Loló
lá na Barra a minha tia, tia Bia
tudo parteira
homem não se metia
naquela época não
só lá fora

receita de licor e ratoeira

a cachaça
ia na farmácia e comprava 
a essência cravo
parece o dirce
abacaxi ou goiaba
dois litros de cachaça
com um litro de água
ou vinho
e se tu ver que vai
dar bastante gente
bota umas seis gemas né
bem batida
aí é o licor

a dança era a ratoeira
meio fantasiado
igual aquela brincadeira da Barra ali
o vestidinho bem rodado
o cara de chapéuzinho de palha
um cinturãozinho né
e dançava tudo abraçado

e cantava a ratoeira
nós dançava muito isso
na casa branca ali
tinha o salão na frente da casa
e aquele terreiro onde eles secavam café
menino com menina
aquelas gaitinha de ponto
bem vestidinho
era a noite toda

Texto: Caroline Cezar

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