- Publicidade -
22 C
Balneário Camboriú

“Santa Catarina é referência nacional em transplantes: tem 16 mil transplantados e 947 na fila”.

Joel de Andrade, coordenador da SC Transplantes

- Publicidade -

A SC Transplantes, criada em 1999, completará 22 anos em dezembro com muitos motivos para comemorar. Cinco anos depois da criação, em 2005, o médico intensivista Joel de Andrade assumiu o comando e transformou Santa Catarina em referência nacional nesse assunto, que lida muito de perto com a vida e a morte. 

Nestes quase 16 anos como coordenador da SC Transplantes ele transformou morte em vida, mas para isso dependia também de outra conquista: a adesão das famílias ao ato de doar. No início, 70% dizia ‘não’. Hoje os números inverteram: 75% dos catarinenses dizem ‘sim’ à doação. E a expectativa é que esse número cresça, porque a doação deixou de ser uma política de governo para tornar-se uma política de Estado, a doação fará parte da grade curricular nas escolas catarinenses e as crianças irão contribuir – e muito – para melhorar ainda mais esse cenário. 

Em meio a uma agenda acelerada, dias corridos e a 40 dias de entregar sua tese de Doutorado, Dr. Joel concedeu  entrevista ao Página 3, onde fala do novo cenário que a pandemia forçou, das dificuldades que ela trouxe, mas tem muito orgulho envolvido, porque que apesar de tudo isso, Santa Catarina continua em posição de destaque no país. Apaixonado pelo trabalho que faz, embarga a voz quando resume em uma frase o aprendizado que veio junto com sua missão:

“O transplante trouxe para mim…vida”.

Acompanhe:

JP3 – Como está o cenário dos transplantes nestes 11 meses de pandemia?

Dr.Joel – Vejo com otimismo o cenário dos transplantes na pandemia, não pelo que ocorreu, mas pelas perspectivas. Digo isso porque em sistemas robustos, como o espanhol, melhor sistema de transplantes do mundo, a pandemia acabou por arrasar qualquer atividade de transplantes durante muitos meses e recentemente tive uma informação que os transplantes estão reduzidos ao mínimo. Em Santa Catarina as doações diminuíram discretamente, nós passamos de 47 doadores por milhão de população em 2019 para 40 em 2020. Os transplantes foram afetados um pouco mais, ou seja, tivemos uma perda de 20 a 30% dos transplantes de órgãos no Estado por conta da impossibilidade de fazer nos picos da pandemia. A pandemia teve essa característica de ir e voltar, ou seja, a partir de julho, a gente imaginava que as coisas iriam ficar melhores e não foi o que se viu, tivemos um novembro, dezembro e janeiro bastante ruins e intensos do ponto de vista de contaminações e internações, comprometimento de pacientes e ocupação de unidades de terapia intensiva. Então o otimismo vem do fato de que, apesar de todas as dificuldades, conseguimos manter uma atividade bastante razoável de doação e devemos continuar progredindo à medida que a vacina faça seu efeito, que a pandemia seja controlada e que nós possamos retomar totalmente as atividades de transplante em Santa Catarina.

“A pandemia foi um enorme desafio do sistema de transplante no país e nem poderia ser diferente”.

JP3 – Em outubro a SC Transplantes registrou um número muito grande de doações. Na ocasião, o registro apontava uma doação por dia. O Sr. disse que esse já era um dos melhores resultados do ano e poderia marcar a retomada pós-pandemia. Isso aconteceu?

Dr.Joel – Sim, houve uma retomada das doações em outubro, resultado bastante positivo, mas novamente não prevíamos uma segunda onda, imaginávamos que as coisas iriam melhorar e se estabilizar a partir daquela data e mesmo tendo acontecido a segunda onda, os resultados de doação no Estado como já falei, fechamos com praticamente 40 doadores por milhão de população, que é um resultado bastante bom. É preciso que se diga, tem duas regiões no país, Paraná e Santa Catarina que tem resultados dessa ordem, todos os demais vêm com resultados que são a metade ou menos desses resultados, então consideramos que aquele foi um momento de retomada, ela se mantém, mas ainda não nos patamares que tínhamos pré-pandemia. Isso deve ocorrer somente quando a taxa de ocupação das UTIs diminuir de modo significativo e retornar o padrão habitual de contatos que as famílias tinham com os pacientes dentro dos hospitais,porque isso é um elemento fundamental para consolidar a doação de órgãos.

(foto Julio Cavalheiro/Secom)

“Desde 2005, SC foi líder nacional em doação de órgãos para transplantes em 12 anos e em outros três, foi o segundo melhor estado do país”.

JP3 – Atitudes imediatas e importantes que a SC Transplantes tomou no início da pandemia conduzem para esse atual cenário…

Dr.Joel – A pandemia foi um enorme desafio do sistema de transplante no país e nem poderia ser diferente. A primeira grande questão foi ter certeza de que pacientes não seriam contaminados por potenciais doadores que porventura tivessem testado com Covid19. Portanto nós muito precoce fomos o segundo estado brasileiro a firmar acordo com o Laboratório Central, o Lacen e todos os potenciais doadores tinham uma amostra de secreção de líquido pulmonar analisada para detecção do vírus, RT-PCR, método de excelência e com isso conseguimos prevenir pelo menos quatro ou cinco transmissões de infecção por doadores contaminados. Também e de modo muito forte mudou completamente toda a rotina de visitação, de conversa e contato com os familiares nos hospitais e isso tudo prejudicou sobremaneira a questão da entrevista familiar, porque se não tem esse contato com a família, a entrevista fica bastante complicada e por isso tivemos um aumento na não autorização familiar neste período. Além disso os pacientes de morte encefálica passaram a ocorrer em número menor, menos acidentes, menos internações hospitalares por outras questões que podem complicar e degenerar na morte encefálica e com isso tivemos menos mortes encefálicas nesse período e isso afetou sobremaneira a forma como trabalhamos nesse período. 

JP3 – Em vários estados as cirurgias de transplante foram suspensas por causa dos riscos de contaminação e porque os hospitais estavam ocupados por pacientes com coronavírus, o que gerou a redução de doações de órgãos e de novos ingressos nas listas de transplantes neste primeiro semestre. Quantos pacientes esperam por transplante em Santa Catarina?

Dr.Joel – Em Santa Catarina como em vários outros estados também várias equipes de transplante suspenderam suas atividades. Aqui marcadamente nos meses de julho e agosto as maiores equipes de transplante renal e a maior equipe de transplante hepático suspenderam as atividades em conjunto, deixando somente o transplante de urgência por serem realizados. Isso obviamente acabou afetando todo o sistema de transplante e hoje nós temos 947 pacientes, sendo que 436 deles esperam por rim e 381 esperam por córnea. A lista de córnea foi a mais afetada, porque tínhamos menos de 100 pacientes em espera por córnea antes da pandemia e mais do que dobrou a lista por conta da proibição que se transplantassem córneas de modo eletivo em todo esse período.

Último curso foi realizado em dezembro de 2019: “Educação é a base do SC Transplantes” (foto Arquivo Pessoal)

JP3 – Segundo a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO), os órgãos que tiveram maior redução no número de transplantes foram pâncreas, pulmão, coração, rim e fígado, mas o transplante de córneas foi o mais comprometido. Santa Catarina se encaixa neste cenário?

Dr.Joel – A redução dos transplantes em Santa Catarina seguiu o padrão brasileiro, pâncreas, coração, rim, fígado foram os transplantes que tiveram maior distribuição de órgãos e o transplante de tecido sem dúvida nenhuma e os transplantes de córneas pela já mencionada proibição. A redução aconteceu também porque em um momento em que os hospitais estavam completamente cheios de pacientes com Covid, se tornou virtualmente impossível internar um paciente, transplantar e dar alta, sem que ele adquirisse a doença. E os pacientes transplantados recebem multipressão então a manifestação da Covid nestes pacientes se espera que seja mais intensa. Por isso esse cuidado para que não perdêssemos pacientes ou que viessem a prejudicá-los com transplantes que poderiam aguardar um pouco mais.

“16 mil catarinenses já receberam algum tipo de enxerto, ou tecido ou órgão. É como se toda população de Palmitos fosse transplantada”.

(foto Divulgação/Secom)
(foto Paulo Goeth)

JP3 – Quais foram suas principais conquistas nestes anos?

Dr.Joel – Não resta dúvida que nos últimos 15 anos que tenho trabalhado com transplantes, tenho observado um envolvimento crescente da população de Santa Catarina em relação à importância de doar. Essa tendência é muito reforçada por um trabalho que é feito de modo brilhante nos hospitais pelos coordenadores de transplantes, que tem máxima habilidade de interagir com as famílias, conversar com elas, mas várias outras iniciativas têm surgido em nosso estado, nas questões de doação e de transplantes. Esperamos que no futuro isso traga ainda mais envolvimento da população que tem dado exemplos brilhantes de solidariedade e de cidadania ao doar órgãos e assim colaborar para que Santa Catarina tenha nos últimos 15 anos por 12 a liderança nacional absoluta em doação de órgãos para transplantes e nos outros três anos, o segundo melhor estado do país, o que consolida uma liderança inquestionável nessa área, fruto da cidadania e da solidariedade do povo catarinense…

JP3 – Uma dessas iniciativas que o Sr. referiu é o projeto de lei aprovado ano passado e sancionado pelo governador de incluir a doação de órgãos na grade curricular de ensino, o que já acontece em vários países do mundo.

Dr.Joel – Santa Catarina aprovou ano passado na Assembleia Legislativa um projeto de lei já sancionado pelo governador que cria a atividade de educação em doação e transplantes nas escolas de ensino fundamental e médio em todo o Estado. É uma experiência pioneira, a principio inédita no país, e deve nos ajudar a longo prazo a melhorar ainda mais a taxa de autorização das famílias que já é bastante boa em Santa Catarina, porque a nossa não autorização está por volta de 25% ou seja, temos 75% de adesão à proposta de doação nas entrevistas em Santa Catarina. A expectativa é que introduzindo esse conteúdo nas escolas, esse resultado melhore ainda mais, porque as crianças levam essa discussão para dentro de casa e acabam precipitando a decisão da doação na família. Nesta fase estamos trabalhando os conteúdos do currículo e preparando toda a questão do plano de ensino para levar para dentro das escolas nesse ano da retomada das aulas presenciais.

Alunos da professora Neli, do Colégio Gardner (São José), após apresentação sobre doação de órgãos em setembro de 2019 (foto Arquivo Pessoial)

“Os anos mais felizes e gratificantes na minha vida de médico eu vivi coordenando a SC Transplantes”.

JP3 – Se tivesse que destacar uma conquista entre tantas, qual seria?

Dr.Joel – Em relação às conquistas da SC Transplantes eu dividiria em três questões, começando pela menos relevante, que é o fato, de modo inquestionável, nós temos a liderança nacional em doação de órgãos, isso é um fato reconhecido nacional e internacionalmente. Santa Catarina é uma referência e é uma conquista em uma área tão delicada na saúde pública. Outra questão que é muito, mas muito importante mesmo é o fato de que hoje 16 mil catarinenses já receberam algum tipo de enxerto, ou tecido ou órgão, nós temos a população de uma cidade equivalente a Palmitos vivendo inteira transplantada, o que me parece algo bastante relevante e a terceira e maior conquista, é que através de um trabalho solidário, integrado, humanizado nós conseguimos com que pessoas que perderam seus familiares e na fase aguda da dor, tendo a elas sido oferecida a possibilidade da doação, elas aderiram e nos relatam, dezenas e dezenas famílias, que isso foi muito importante para diminuir a dor que elas sentiram de perder a pessoa que amavam. Essa perspectiva de que esse evento existiu, mas que acabou também em algo positivo para alguma pessoa que recebeu um tecido ou um órgão. Isso tudo é muito importante para o trabalho que a SC Transplantes faz e vai continuar fazendo.

JP3 – O que toda pessoa deve saber para tornar-se um doador? 

Dr.Joel – É muito importante que todos saibam que a nossa chance de morrer nas condições que a gente possa ser um doador, são aproximadamente de 30% da nossa chance de precisar em vida de algum tipo de transplante ou seja, somadas as necessidades de transplante que cada indivíduo possa ter durante a vida, isso é três vezes maior do que a chance que ele tem de morrer, nas condições de morte encefálica. Por isso que a gente quer ter direito quando precisar ou que um irmão, um filho, uma esposa, um pai, alguém que a gente gosta, tenha esse direito. Temos que lembrar a nossa consciência e declarar para a família que somos um doador. As famílias quando ouvem do indivíduo que ele é um doador de órgãos, elas vão honrar isso em qualquer circunstância. Nestes 15 anos de experiência nunca ouvi uma família que não tivesse honrado a palavra da pessoa em vida. Por isso é muito importante falar para sua família e ter certeza que a família vai respeitar. Se você é um doador fale que tem um doador nesta família e que a vontade dele deve ser respeitada.

“Temos que lembrar a nossa consciência e declarar para a família que somos um doador”.

JP3 – Um transplante é um procedimento de alto custo. Em contrapartida ele representa uma economia para o Estado. Quanto SC investe em transplantes que tornam o Estado uma referência nesse assunto?

Dr.Joel – O sistema estadual de transplantes é composto de duas faces, a parte do transplante que ocorre na maior parte em hospitais públicos ou filantrópicos da rede, para órgãos é praticamente público e filantrópico só, e existe um componente de regulação, que cuida de toda doação que é o SC Transplantes e a Rede de Hospitais Coordenadores. São mais de 50 hospitais que fazem coordenação em doação de orgãos e eles tem atividade de coordenação financiada pela SC Transplantes. Além disso tem todo o funcionamento da SC Transplantes, parte interna, servidores, veículos, convênios de transportes, os cursos de educação, tudo isso representa um custo, mas o recurso gerado é muito, muito superior. Só um hospital que transplanta fígado em Santa Catarina tem uma receita anual que supera os R$ 10 milhões. Então o custo anual global, do sistema inteiro, incluindo salários dos servidores da Secretaria, sobreaviso, veículos, convênios, contratos chega a R$ 560 mil por ano. É isso que a Secretaria investe. O retorno? Se pegar um programa de transplantes de um hospital, a receita é superior a R$ 10 milhões, ou seja, quase 20 vezes o que custa o programa para o estado em um só programa de transplante. No Estado inteiro então… o que arrecada é muito superior, além do que, por exemplo, cada paciente que faz um transplante renal ele deixa de ser um cliente da diálise, o que é uma economia em escala enorme.

JP3 – Nos últimos 15 anos o Sr. está trabalhando e comandando pessoas que lidam todos os dias com a vida e a morte, com a alegria e com a tristeza, com o começo e com o fim. O que tudo isso representa em sua vida?

Dr.Joel – Eu tenho 30 anos de formação em Medicina. Essa segunda metade, esses últimos 15 anos, representam para mim as maiores conquistas, os maiores aprendizados e aqui não falo de resultados, de números, falo simplesmente de ter aprendido muito sobre ética, sobre solidariedade humana, sobre superação. O transplante tem uma característica muito marcante, que é trazer uma oportunidade de vida para quem busca essa oportunidade de vida. Ver as famílias sofrendo a perda de alguém que amam, sublimam a dor, e em cima disso conseguem ser solidárias e salvar a vida de outras pessoas, no momento em que o familiar delas perdeu a vida, isso tudo é extremamente gratificante e mobilizador. Os anos mais felizes e gratificantes na minha vida de médico eu vivi coordenando a SC Transplantes. Tenho um tremendo orgulho de trabalhar nessa área e de comandar uma equipe absolutamente comprometida com o trabalho da coordenação e dos transplantes em Santa Catarina. Enfim é uma realização enorme e eu sempre digo, algumas pessoas me perguntam, sobre as contribuições que eu trouxe para o sistema de transplantes de Santa Catarina… e eu sempre ressalto que o transplante trouxe para mim vida. Trouxe sentido no meu trabalho de médico e uma alegria, um contentamento que não tem paralelo na minha vida de médico anterior a esse trabalho.

“Hoje temos 947 pacientes na fila, sendo que 436 deles esperam por rim e 381 esperam por córnea”.

- Publicidade -
- Publicidade -
- publicidade -
- Publicidade -