BOGOTÁ, COLÔMBIA (FOLHAPRESS) – Se você ler por aí que a crise climática está impactando o nosso tempo na Terra, talvez pense que se trata de uma questão existencial. Mas a afirmação pode ser mais literal do que se imaginaria. A mudança climática -inquestionavelmente guiada pelo homem- e o uso que o ser humano faz dos recursos planetários estão interferindo diretamente com o que entendemos como tempo.
O que parece saído de uma história de ficção científica consta nas páginas das publicações científicas Nature e da Geophysical Research Letters.
Mas como é possível que a mudança climática impacte a noção de tempo? A resposta está nas geleiras.
A explicação para o fenômeno é que o degelo na Groenlândia e na Antártida está diminuindo a velocidade angular da Terra.
Claro que essa informação não te ajuda a entender o problema como um todo. Apertem os cintos!
A rotação da Terra influencia nossos relógios. O Tempo Universal Coordenado (UTC, sigla com a qual você já pode ter tido contato na comunicação com alguém de longe) leva em conta o tempo medido a partir de relógios atômicos e também considera a rotação terrestre. Mas esse movimento da Terra tem variações.
Segundo o estudo da Nature, há dois parâmetros que podem alterar a velocidade angular da Terra: a influência do Sol e da Lua, que podem levar a mudanças de poucos milissegundos; e a atmosfera e movimentos do oceano, com a maior contribuição -até mesmo a fricção entre o mar e o assoalho oceânico entra na conta.
Outros pontos importantes na rotação: o formato da Terra -calma, a Terra não vai ficar plana, as mudanças, que dependem da quantidade de gelo nos polos, não são radicais; e a relação entre manto e núcleo.
Se ainda parece confuso como esses elementos interferem na rotação do planeta, há uma brincadeira que dá uma ideia de como a distribuição de massa pode afetar o planeta. Imagine-se girando sobre uma cadeira -ou se arrisque no experimento.
Ao girar com os braços abertos, você estará em certa velocidade. Mas, ao colocar os braços junto ao tronco, sentirá que houve aceleração da rotação, exemplifica Leonardo Uieda, professor do departamento de geofísica, do IAG (Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas) da USP.
Se você já parou de girar, voltemos ao cálculo de tempo. Para manter o tic tac sincronizado entre a rotação da Terra e os relógios atômicos, em alguns momentos se adicionam segundos aos nossos horários, o que aconteceu 23 vezes de 1972 a 1999. Porém, tal adição se tornou rara. Nos últimos 23 anos, o acréscimo só ocorreu 4 vezes.
Tal fato indicaria que a rotação terrestre estaria acelerando.
O estudo da Nature aponta que, entre os diversos fatores que poderiam explicar a aceleração, o culpado mais provável é o acoplamento entre o núcleo e o manto. Traduzindo, “a interação entre o núcleo externo fluido da Terra e seu manto sólido”, explica Carlos Alberto Moreno Chaves, também pesquisador do departamento de geofísica do IAG da USP. “Esse acoplamento pode alterar o momento angular da Terra, influenciando sua taxa de rotação.”
Com todos esses elementos envolvidos, talvez agora fique mais claro como o derretimento de geleiras -e a consequente distribuição de massa- influencia a rotação terrestre. E é agora, finalmente, que esses fatores entram na equação.
“Quando as geleiras e as calotas polares derretem, a água, que estava anteriormente concentrada nas regiões polares, é liberada nos oceanos e redistribuída globalmente”, diz Chaves. “Além disso, o aumento do nível do mar devido ao derretimento das geleiras pode afetar o equilíbrio da Terra, provocando ajustes isostáticos e variações na gravidade local, que também podem impactar sutilmente a rotação do planeta.”
Mas então, ao mesmo tempo em que havia a aceleração citada, o derretimento das geleiras estaria provocando uma desaceleração na rotação.
A lógica é que a aceleração vista -responsável pela menor necessidade de mais segundos nos relógios- possivelmente provocaria, segundo as estimativas do autor do estudo, em 2026, a necessidade de retirar 1 segundo do tempo.
Mas o derretimento das geleiras -e a consequente desaceleração gerada- teria empurrado a necessidade do segundo a menos para 2029, segundo as estimativas do estudo.
E daí?
Há mais implicações práticas do que parece. Retirar 1 segundo do tempo nunca foi necessário na história. “Então, os problemas que isso pode causar são sem precedente”, diz Patrizia Tavella, pesquisadora do departamento de tempo do International Bureau of Weights and Measures (Escritório Internacional de Pesos e Medidas).
A contagem de tempo é importantíssima para os nossos sistemas computacionais e informacionais -estamos falando de uma rede mundial conectada. “Muitos sistemas agora têm softwares que podem aceitar 1 segundo adicional, mas poucos, se houver algum, permitem a remoção de 1 segundo”, afirma Duncan Carr Agnew, autor do estudo publicado na Nature e pesquisador do Instituto de Geofísica e Física Planetária do Scripps Institution of Oceanography, na Universidade da Califórnia San Diego.
“A relação entre a água nos oceanos, o derretimento das geleiras e a velocidade de rotação da Terra é um exemplo fascinante de como processos geofísicos estão interconectados”, afirma Chaves.
EIXO
A ação humana consegue ter outro impacto impressionante e difícil de imaginar. A mudança do eixo de rotação do planeta.
Um estudo publicado na Geophysical Research Letters mostrou a contribuição da retirada de água de aquíferos (para irrigação, por exemplo) para o aumento do nível do mar, o consequente deslocamento de massas e o desvio do polo de rotação da Terra de cerca de 78,48 cm em direção a 64,16°E.
“É uma quantidade mínima de massa que está sendo redistribuída. Isso vai gerar uma perturbação no eixo de rotação da Terra e no movimento da Terra, que é pequena. E isso é uma coisa que eu acho impressionante: a precisão que a gente consegue medir algumas dessas coisas”, diz Uieda, da USP.
Além da extração de água subterrânea, não podemos esquecer as geleiras. “Se eu redistribuo massa, eu mexo no eixo de rotação da Terra. É como se eu tivesse um peão e você coloca um chiclete do lado dele. Ele vai começar a girar todo torto”, afirma Uieda. “É minúscula a diferença. Não é que de repente a Terra vai estar girando em torno do Canadá.”
O trabalho usou, em linhas gerais, informações de satélite para comprovar o que era visto em modelos climáticos. “Eles estão meio que dando uma ferramenta nova para a gente conseguir entender quais são os fatores que estão contribuindo para o aumento do nível do mar. E isso é importante a gente saber, porque esse aumento tem um impacto direto nas comunidades humanas”, afirma Uieda.
“Projeções de aquecimento climático futuro sob cenários de altas emissões sugerem que a duração dos dias induzida pelo clima pode superar o atrito das marés causadas pela atração lunar como o principal fator responsável pelas variações de longo prazo no comprimento do dia”, aponta Chaves.
O tempo da Terra sempre foi contado e a crise humana do clima vem mexer nos (ou tirar) segundos dessa conta.