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O bailarino pianista e o cruel genocídio de uma civilização

Posso dizer que padeci um bocado com o impacto causado pelo ar rarefeito da capital da Bolívia. La Paz se projeta soberana a mais de 3.600 metros entre os cumes da esplendorosa Cordilheira dos Andes.

Quem vive em cidades ao nível do mar não está acostumado às condições atmosféricas das grandes altitudes. O organismo sente o impacto da mudança e precisa de tempo para se adaptar. A dificuldade de respirar me incomodava e desci os gélidos píncaros andinos em direção ao Peru.

Era um final de tarde quando me abanquei em uma praça na região central de Lima, metrópole banhada pelo Oceano Pacífico que beira 10 milhões de habitantes. Confesso que o cansaço me desestimulava armar a barraca para mais uma noite de sono e insegurança.

Sim, pois uma simples barraca de camping não serve de proteção em situações de perigo, por isto acompanhava-me sempre na cintura da calça uma prosaica faca. Mas já era alguma coisa. Felizmente nunca precisei utilizá-la. Mesmo porque, início dos anos 80, a violência engatinhava se comparado aos dias atuais. Salvo, é claro, os países latino-americanos naquela época conflagrados à custa de regimes ditatoriais que deixavam um rastro de sangue derramado pelos insurretos que ousavam se rebelar contra a tirania e opressão

A Nicarágua, por exemplo, vivia tempos de guerra civil, no Chile o regime agonizava, mas ainda fazia suas vítimas, enquanto no Brasil a ditadura militar já havia deixado para trás o período mais negro das torturas e mortes, que teve seu ápice no governo do general Emílio Garrastazu Médici. O período dele na presidência, entre 1969 e 1974, ficou conhecido historicamente como Anos de Chumbo.

E um outro detalhe que evitava o temor do viajante: os brasileiros, em regra, eram muito benquistos pelo povo dos países andinos. Quando me apresentava, recebia logo um sorriso largo e a recepção acolhedora: ah!! Brasil!!! País do Carnaval com suas sensuais mulheres seminuas, Rio de Janeiro, Pelé e Roberto Carlos eram repetidos à exaustão, como símbolos mais lembrados.

Bem, voltemos à capital peruana. Já anoitecia quando um rapaz sentou-se ao meu lado no banco da praça. Pediu um cigarro e entabulamos uma conversa. Ao saber que viajava vários países na base da carona e da hospitalidade das pessoas que cruzava pelo caminho, não titubeou e ofereceu-me abrigo na casa de um amigo dele, bailarino de profissão. Chamava-se Lúcio.

Ao ser apresentado a ele, o bailarino confirmou que não havia problema, que com prazer daria guarida por aquela noite e algumas outras se acaso fosse necessário. Que bela e acolhedora atitude!

Desfiz-me da mochila que àquela altura parecia ter triplicado o peso e refestelei-me no sofá da sala. Lúcio, por sua vez, acomodou-se na banqueta de um velho piano que ornamentava a pequena sala de visitas e indagou se eu não gostaria de aprender algumas noções básicas da arte musical, uma vez que nas horas vagas era professor de piano, embora com escassos alunos. Sem esperar minha resposta, passou a ensaiar alguns acordes que reconheci como sendo a admirável ‘Sonata ao Luar’, de Bethoven.

Olha! – pensei comigo, admirado – além de bailarino, é músico! Mas notei logo que algo estava errado. O piano parecia desafinado, as notas saíam truncadas, as mãos mostravam dificuldade em deslizar sobre as teclas. Foi quando percebi as unhas vampirescas do meu anfitrião.

Um tanto decepcionado com a esdrúxula e grotesca situação, resolvi interferir e sugerir, educadamente, que as unhas avantajadas atrapalhavam seu desempenho e o impediam de revelar seu possível talento. E qual não foi minha surpresa quando ele, sacando de uma gaveta um prosaico cortador de unhas, aparou-as ali mesmo, tendo a mim como plateia, dizendo que já havia pensado por diversas vezes em cortá-las, e que a minha sensível intervenção o tinha convencido.

E ainda mais surpreso fiquei – para não dizer pasmo -, quando Lúcio, logo após a operação corta unha, rodopio a banqueta em que estava acomodado e, olhando fixamente por alguns segundos para o teclado à sua frente, executou magistralmente o divino Bethoven. Que deliciosa sensação experimentei ao presenciar a magnitude do recém conhecido músico! E de saber que eu tinha contribuído para que ele se redescobrisse.

Foram cerca de trinta minutos de uma apaixonada audição. Supremo deleite! Enalteci sobremaneira a sua virtude musical, mas expliquei-lhe que embora eu fosse apaixonada pela música erudita, não seria em um curto espaço de tempo que eu poderia assimilar o difícil aprendizado. E passamos a dialogar expansivamente!

Papo vai, papo vem, alguns drinks de rum com inca-cola – sim, não era coca-cola, mas uma variação parecida da bebida – e à medida que a noite avançava começaram a chegar vários amigos de Lúcio. Percebi pelos trejeitos que todos eram homossexuais.

Tudo bem, relaxa! Passava da meia noite quando a última visita foi embora. Decidi então, exausto ao extremo, recolher-me e deitei no sofá da sala. Foi quando Lúcio prontamente interveio: – no, no, mi cama, e apontou para uma cama de casal em seu quarto. Eu então retruquei: – no, estoy bien a ca, no te preocupes. Mas ele insistia!

Depois de algum tempo de relutância minha e de muita insistência por parte dele, não tive outra saída senão aceitar dividir com ele a confortável cama. Deitados, Lúcio passou a assediar-me, passando a mão em minhas pernas e que tais. Desvencilhei-me das seguidas investidas, dizendo que não, que respeitava a opção sexual dele mas a mim me gustavan las mujeres.

Depois de quase uma hora nesse entrevero, eis que repentinamente ele sobe em cima de mim! Não pretendendo travar uma luta de espadachins, o repeli com certa truculência. Mas Lúcio, um tanto embriagado, não desistia. O assédio perdurou por mais algum tempo, quando finalmente ele pegou no sono. Muito cansado, acabei também dormindo.

Após umas três horas de sono acordei, e ainda sobressaltado com o acontecido, levantei sorrateiramente, peguei minha mochila e, sem dizer adeus, saí da residência e ganhei as ruas de Lima. Depois daquela noite tormentosa resolvi pegar um ônibus que me levaria até a Rodovia Transamericana, que possui nada menos que 48 mil quilômetros de extensão e liga todos os países do continente americano. Começa na Argentina e termina no Panamá. O objetivo era conseguir uma carona até o Equador.

Cheguei à Transamericana no início da manhã e lá já estavam, às margens da rodovia, vários mochileiros que a exemplo de mim caíram na estrada em busca de aventura e conhecimento. Para simplificar: torrei debaixo de um sol escaldante até metade da tarde e nada.

A maioria dos veículos que transitavam por aquela rodovia eram caminhões. Somente ganharam carona algumas garotas que então compartilhavam do grupo de viajantes. Depois fui saber que não era raro caminhoneiros abrirem exceção e deixarem embarcar homens. Mas a intenção não era ser solidário. No meio do itinerário eles simplesmente saqueavam os incautos mochileiros, deixando-os apenas com a roupa do corpo. A minha decepção virou então alívio. Que bom que não consegui carona!

Voltei ao centro de Lima com uma ideia fixa: conhecer Machu Picchu, também descrita como “cidade perdida dos Incas”, a 2.400 metros de altitude. Foi construída no século XV mas só descoberta em 1911. A beleza do lugar e a atmosfera misteriosa que o envolvia eram de arrepiar!

Indagava-me como uma preciosidade daquela, de monumental arquitetura e organização exemplar, pôde ser edificada por um povo indígena que viveu numa época de tão escassos recursos técnicos. Formam Machu Picchu duas grandes áreas: a agrícola, que dispõe de terraços e recintos de armazenagem de alimentos, e outra urbana, que abriga a zona sagrada com seus templos, praças e mausoléus reais.

A excelência e precisão na construção dos prédios, com riquíssimos ornamentos em ouro e pedras preciosas, e o grande número de terraços para agricultura impressionam e revelam a capacidade invulgar daquela sociedade. No meio das montanhas, os templos, casas e cemitérios estão primorosamente distribuídos e organizados, com a abertura de ruas e o aproveitamento do espaço com longas escadarias.

Infelizmente a iluminada civilização Inca foi violentamente extinta pela cruel e sanguinária esquadra espanhola, que não poupou ninguém de sua sanha colonizadora. Nem homens, nem mulheres, nem crianças!

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