Foi em meados da década de 60. Itajaí, com seus 60 ou 70 mil habitantes, esboçava os primeiros passos rumo ao desenvolvimento, impulsionado principalmente pela fecunda atividade pesqueira e pelo seu porto mercante. Era uma cidade pacata, provinciana, características que até os dias de hoje, indelevelmente, ainda mantém.
Mas naquela época, nem mesmo a Rua Brusque, uma das principais artérias da cidade, possuía calçamento. Era ali que minha família morava, há longos anos, e onde a quietude era quebrada pela passagem, às vezes tímida, às vezes alvoroçada, de cavalos a puxar carroças ou carros de mola.
Eu deveria ter meus sete anos de idade e de travessuras. De pés descalços, gostava de brincar na chuva e de sentir o cheiro da terra levantando ao sabor da água que caía.
Foi um final de tarde, lembro-me bem. A calmaria foi quebrada por fortes estampidos, vindos não sabia de onde, mas que chegavam a iluminar as encostas do Morro da Cruz. Era mágico e assustador ao mesmo tempo. Mas o que seria aquilo? Era o que todos se perguntavam. Boa coisa não seria.
De repente veio a notícia apocalíptica. Um navio que descarregava uma carga de gás nos terminais da Heliogás ardia em chamas. E o fogo, caso não fosse contido a tempo, tomaria conta da cidade. A catástrofe se prenunciava porque a Heliogás se localizava justamente no bairro Cordeiros, em meio aos terminais petrolíferos da Texaco, Esso, Shell, Ipiranga e Atlantic.
Foram horas de desespero. As pessoas corriam apavoradas, mulheres carregavam trouxas de roupas nas costas, filhos nos braços. Caminhões com suas carrocerias lotadas só tinham um destino: fugir do fogo, fugir da cidade que seria riscada do mapa. A tragédia estava estampada nos semblantes aflitos. Um vizinho ofereceu seu caminhão para que fugíssemos juntos, as duas famílias, para Balneário Camboriú. Mas não seria para tanto, dizia meu pai, propenso a esperar o desenrolar dos acontecimentos.
Com o passar das horas, os reflexos de luzes no Morro da Cruz, contrastando com o negrume da noite que avançava, foram se amainando, se amainando, até desaparecerem por completo. Depois se soube. O bombeiro do navio, encarregado de bombear o gás para os tanques da Heliogás, havia investido contra as chamas ardentes e fechado as válvulas que davam vazão ao gás, evitando que a tragédia se consumasse. Logo em seguida ao ato heroico, ele jogou-se nas águas do rio Itajaí-açu, de onde foi retirado quase sem vida, com queimaduras generalizadas que cobriam de bolhas todo o seu corpo. Levado ao hospital, não resistiu e morreu.
Como prêmio pelo seu heroísmo e coragem, ele teve seu nome dado a uma rua da cidade. Rua Odílio Garcia, uma rua de subúrbio, no bairro de Cordeiros, próximo ao local onde, despojando-se do medo, doou a própria vida para salvar dezenas, centenas, quem sabe milhares de vidas. A empresa onde Odílio Garcia trabalhava negou à sua família qualquer indenização. Ofertou sim, ao pai de Odílio Garcia, uma medalha de honra ao mérito para que fosse colocada no túmulo do filho. Nada mais. E nos anais da história de Itajaí, nenhuma linha, sequer, foi escrita. Nenhuma homenagem, nenhum busto. Só restou o esquecimento.
NOTA – Esta crônica foi escrita em 1993, quando eu era aluno do Curso de Jornalismo da Universidade do Vale do Itajaí, a Univali. Alguns anos depois Odilio Garcia teria finalmente uma homenagem digna do ato de bravura que heroicamente protagonizou, com seu nome sendo dado ao Parque Náutico construído no bairro Cordeiros. E um livro escrito pelo sobrinho de Odilio, Magru Floriano, em parceria com o jornalista Ivan Rupp Bittencourt, perenizou definitivamente a memória deste grande itajaiense.