Quando chegava dezembro o meu coração batia mais forte e descompassado. Era sagrado, terminado o período letivo, minha família viajava de férias de Itajaí para Nova Veneza, pequeno município do sul catarinense fundado por imigrantes italianos. De lá são meus pais, Pedro e Luiza Ghislandi, e foi lá aonde vim ao mundo. Mas apenas nasci lá, pois é em Itajaí que vivi toda minha existência, e amo cada metro quadrado dessa inebriante e fabulosa cidade.
Porém, nos encantamentos de criança, havia me apaixonado irremediavelmente por aquela minúscula e cativante colônia italiana. Tanto que contava os dias que nos separavam de cada incursão anual que fazíamos, e as noites que antecediam a viagem eram repletas de sonhos daquele lugar que considerava o paraíso na terra.
Em Nova Veneza ficávamos dois, às vezes quase três meses. Éramos em seis, contando meus irmãos Fernando, Paulo e Margareth. Permanecíamos sempre na casa de meus avós maternos, os quais só conhecíamos por dinho e dinha. Os paternos eram chamados de nono e nona.
Sempre depois da missa na igreja matriz, íamos todos para a praça da cidade. Ali eu subia num banco e cantava solenemente músicas sacras, para deleite das carolas. Devia ter sete ou oito anos de idade e a minha cantoria rendia sempre alguns trocados.
Que alegria! O fogão à lenha, o paiol, os suínos, as galinhas, os coelhos o milharal, o pomar multicor, o parreiral de uvas e a miríade de parentes e amigos completavam o universo mágico da minha infância em Veneza. As primeiras namoradinhas eu as tive lá, a Jane e a Susi. Ah a sensação inebriante das paixões pré-adolescentes. Os encontros se davam sempre na praça.
E ao lado da praça tinha a fábrica de refrigerantes Búrigo. Framboesa, laranja e limão eram os sabores. Passava horas parado na porta apreciando maravilhado aquelas garrafas enfileiradas sendo automaticamente preenchidas e tampadas na linha de produção. Uma ou outra garrafa que se desviava da esteira era oferecida a mim, que a saboreava com imenso prazer.
No outro lado da praça era o restaurante da família Bortolotto. Aos domingos vinha gente de Criciúma, Siderópolis, Urussanga e imediações só para comer a deliciosa macarronada, que ganhou fama e até hoje ainda é ali servida. A vida na pequena Veneza, como podem ver, girava em torno da praça naqueles velhos tempos.
Hoje a cidade se expandiu e virou rota obrigatória do turismo típico italiano, com a proliferação de restaurantes, centros culturais e de lazer e inclusive uma romântica gôndola que flutuava nos canais de Veneza foi trazida da Itália e ancorada no rio Mãe Luzia para o deleite dos visitantes.
Até meus 14 ou 15 anos o ritual da viagem da família se repetiu, quando então passaram a rarear. Talvez a morte do meu avô aos 68 anos, relativamente jovem, tenha influenciado. Já era costume vô Hercílio, ou Dinho, sacrificar no final do ano um porco para festejar com a família. O meu horror eram os berros lancinantes do animal já de manhãzinha. Ficava consternado com o destino cruel do porco e nunca consegui acompanhar de perto o desfecho trágico. Ainda me vem às narinas o delicioso cheiro do torresmo. Esta era a única parte que eu apreciava.
Confesso que passada a adolescência, muito pouco tenho ido a Nova Veneza. No final da década de 70, já com meus vinte anos de idade, resolvi rever minha cidade natal. Na boleia de um chevette segui em companhia do meu irmão Fernando, de saudosa memória, e dos amigos de Itajaí, o hoje advogado Mauro César dos Santos, e o astrólogo Paulo Pinheiro.
Levamos sorte. Chegamos num sábado de festa na cidade. Um baile de debutantes iria agitar o Clube Metropolitano naquela noite. Como minha avó materna havia se mudado para Florianópolis após o falecimento do marido, ficamos hospedados na casa de uma irmã de meu pai. Helena Frigo era uma tia muito querida. Contava com os olhos marejados sobre a mortandade de peixes no rio Mãe Luzia, que passa atrás de sua casa e que divide Nova Veneza em duas, no meio uma grande ponte.
A denominação “Mãe Luzia”, refere-se a uma bondosa senhora, Luzia, que lavava roupas às margens do rio. Era um rio cheio de vida. Meu pai contava que era costume pescar à noite, quando bastava acender uma lanterna para os peixes saltarem em abundância para o interior da bateira, atraídos pelo fascínio da luz.
A atividade carbonífera em Criciúma e região revelou-se trágica para um rio vigoroso e extremamente piscoso. Os dejetos do carvão exterminaram toda a diversidade que habitava suas águas. Milhares e milhares de peixes eram vistos diariamente boiando, como um espetáculo macabro, contava emocionada tia Helena. Até o desaparecimento completo de qualquer sinal de vida. Foi nesse rio que corta minha aldeia que, em tenra idade, aprendi a nadar.
Mas era chegada a hora do baile. Nuvens amedrontadoras negrejavam o céu até então iluminado pelas estrelas, prenunciando temporal. Mas estávamos definitivamente resolutos: uma noite festiva nos aguardava. Eu, meu irmão e os dois amigos colocamos nosso melhor traje e rumamos em direção ao Clube, que ficava bem no centro de Nova Veneza, e que tinha o rio nos fundos a encantar a paisagem.
Tudo corria às mil maravilhas e até umas paqueras estavam ainda mais nos animando quando fomos eu, meu irmão e os dois amigos até o bar do Metropolitano pedir mais um cuba libre. Ao retornarmos em direção à mesa onde estávamos, já com a bebida em mãos, uma forte rajada de vento canalizado pelo rio entrou pelo grande janelão que ficava atrás do bar e levantou o teto do clube, despejando pedaços de madeira e tijolos a dezenas de metros.
Uma parede que dividia o salão de baile e o bar desmoronou estrondosamente, segundos após deixarmos o local com os cubas. Mais alguns segundos e poderíamos ter sido vítimas, quem sabe fatais, do paredão que desabou. Foi um verdadeiro alvoroço, debutantes e familiares gritando desorientados, todos buscando a porta de saída do Clube. No final, vários feridos, mas milagrosamente ninguém com gravidade.
Depois deste episódio, rareei ainda mais minhas viagens a Nova Veneza. Mas não propriamente devido ao assustador episódio, que transformou-se em mais uma história nesta fascinante estrada que é a vida!