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Balneário Camboriú
Marisa Zanoni Fernandes
Marisa Zanoni Fernandes
Ex-vereadora em Balneário Camboriú, é doutora em educação e professora universitária.
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Queijos e chuvas

Tenho uma atração incomum por caminhar ou correr em dias de chuva ou depois de ela terminar. Em janeiro sempre reservo um tempo para essa experiência. Sentir a chuva deslizando pelo corpo, embaçando a visão, molhando a roupa, empoçando no calçado, alterando as sonoridades e os ritmos, assemelha-se a uma sinfonia. Os pingos regem um processo de despir-se e colar-se por dentro da roupa e para dentro de si.  

A chuva que contorna o corpo e, na fluidez, me projeta ao imprevisto, ao inusitado, deixa marcas que rapidamente escoam e ecoam como o tempo sendo tempo – sem previsão do tempo. As chuvas que percorrem em mim, sobretudo as convectivas, são sempre convidativas, irrecusáveis.

Terça-feira, verão de 2022, após intensas chuvas, o tempo continuava nublado e as nuvens cinzentas dividiam o espaço celeste com algumas aberturas de luz, o que deixava o clima abafado e sujeito a precipitações. Caminhava em um trajeto que nunca havia experenciado e precisava atravessar uma pista de intenso movimento de carros, mas não havia faixa de segurança. A espera e a atenção para a travessia segura foram antecedidas por pisar na grama molhada e afundar os pés na lama, em um espaço que não havia a presença do concreto da calçada. Certamente, não há problemas pisar na lama e embarrar os pés quando não se pretende chegar a um destino formal ou de trabalho. O ócio parece fluido como a chuva e nele há permissão à desobediência sem medo, como a chuva de Raul Seixas, que voltando pra terra traz coisas do ar.  

No percurso, observava a tímida dimensão de grama e de mato resistindo à aridez, e como a água da chuva lhes servia de fonte de vida. Entretanto, o que mais me chamou atenção é quem anonimamente passava por mim: gente que também resiste à invisibilidade e à escassez. Gente que move e se move independentemente da chuva, do sol, do calor e do peso que carregam.

Dividia, então, uma estreita passagem com um homem que aparentava ter uns 40 anos de idade, de estatura baixa, cabelos pretos e curtos, de corpo magro e de pele marcada pelo sol, que usava um chinelo de dedo, uma bermuda e uma regata azuis. Carregava um cooler sobre os ombros e mais um pequeno equipamento anexo. Muito gentil, foi logo cedendo espaço para que eu passasse, fato que dificultava a caminhada dele. Não me senti muito confortável, pois ele é quem deveria usar o maior espaço, já que eu não tinha nada a carregar. Cumprimentei-o e senti vontade de conversar. Foi o que fiz rapidamente, e é claro que o assunto iniciado foi sobre o tempo e a chuva. Sabe… tenho a sensação de que esse tema é ancestral – ele abre qualquer conversa, aproxima estranhos, “quebra o gelo”, serve como uma espécie de portal de relacionamento.  

O bate-papo logo seguiu para as marcas de água e de lama deixadas pela chuva, que habilidosamente marcava o prolongamento dessa conversa. O homem desconhecido revelava que, do lugar de onde ele vinha, as chuvas, com o passar do tempo, tinham diminuído, mas havia ainda espaços de vegetação apesar do concreto (em Brasília, a aridez era outra – pelo menos para mim).

Aquele homem, de sorriso fácil, apesar da falta de dentes, de gentileza explícita, comentava sobre a situação das suas vendas na praia como ambulante, dizia que não dava para se queixar: o movimento estava bom e que ainda tinha outro trabalho também de vendedor em Brasília nas proximidades da Esplanada dos Ministérios. Percorri, então, ao tema da política, mas sobre esse assunto ele logo alertou que não gostava de discutir. Ouço com muita frequência que política e religião não se discutem – mas isso, para quem me conhece sabe que é algo impossível de entender. Bem, o que era possível entender rapidamente é que aquele homem reservava uma sabedoria e uma solidariedade imprescindíveis para qualquer tempo.

Não gosto de gente que fala mal das mulheres, que falta com respeito com negros, com os pobres. O jeitão bruto de ser. Ah, dona, isso me deixa muito chateado e, pra mim, gente que se comporta assim, já basta pra eu não votar e nem chegar perto, nem precisa olhar pra outras coisas – comentava ele.  

Mudando de assunto, aquele homem me contava como comprava os produtos em promoções e os guardava para revender, que tinha o desejo de trazer a mãe para morar na região – que achava bonita, da ampliação das vendas por aqui, da manutenção e da ampliação do trabalho em Brasília, colocando outras pessoas para ajudá-lo. A conversa me fez crer que aquele homem carregava também uma energia contagiante. Carregava fé, esperança, bondade e humanidade – atributos escassos e áridos que têm enclausurado experiências, encurtado conversas e relações.

Sabe aquele queijo coalho trazido até você na praia? Aquele sujeito estranhamente sofrido e castigado pelo sol e pelas brasas ardentes? Então, foi o percurso desconhecido que me fez reparar e enxergar um homem de beleza oculta – um brasileiro, de nome estrangeiro, que acende a vida no sopro, como o faz no carvão que carrega. Um entre tantos sujeitos e tantas histórias invisíveis como aquele mato e aquela lama em meio ao concreto, mas tão essenciais como as chuvas. Essenciais como essa gente em mim e como aquele caminho que tomei.

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