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Mundo começa a comemorar o centenário de nascimento de Astor Piazzolla

Por João Marcos Coelho

O mundo já começa a comemorar o centenário de nascimento de Astor Piazzolla, um dos maiores músicos do século 20, responsável por uma revolução no tradicionalíssimo tango argentino. A data exata é 11 de março de 1921. Mal comparando, Piazzolla está para o tango como Tom Jobim para a música brasileira – um divisor de águas, responsável por uma revolução artística raríssima: transformou um gênero totalmente estratificado em laboratório de pesquisas para novos voos instrumentais. De repente, o tango propiciou improvisos, como o jazz (e também a bossa nova por aqui).

Não por acaso, ele nasceu na Argentina, mas passou a meninice e adolescência em Nova York, com a família. Eles retornaram a Buenos Aires em 1937. Dois anos depois, já atuava na orquestra de Anibal Troillo. Depois de uma passagem por Paris, onde estudou com Nadia Boulanger, empreendeu a partir de 1955, com seu Octeto Buenos Aires, uma encarniçada guerra com os tradicionalistas da qual saiu plenamente vitorioso. Estudou com o compositor Alberto Ginastera e compôs música erudita. Aventurou-se com sucesso até numa ópera-tango, Maria de Buenos Aires, Mas, como Jobim, Piazzolla é imortal por temas emblemáticos e popularíssimos como Adiós, Nonino, Oblivion, Libertango (uma música manifesto do “nuevo tango”), Milonga del Angel e a incrível Balada para un Loco (1968), sobre versos de Horacio Ferrer e performance memorável de sua mulher Amelita Baltar. Suas Cuatro Estaciones Porteñas já foram gravadas dezenas de vezes se alternando cada estação com as arquiconhecidas barrocas de Antonio Vivaldi. Assim como a sensacional História del Tango, obra da maturidade, de 1986, que recebeu variadíssimas versões e arranjos.

Qual o maior diferencial de grandes músicos como Tom e Astor? Com certeza, sua concepção inclusiva da música. Eles trafegaram com a mesma sabedoria e expertise pelo mundo dito erudito e também pela música popular. Ampliaram o alcance de suas criações, sem abrir mão da qualidade de invenção. Afinal, todo músico não nascido na Europa convive com estas duas tradições: de um lado, a europeia branca, estratificada por séculos de domínio que lhe deram espaço para enfiar nos corações e mentes do público e dos músicos dos demais continentes de que aquela – e só aquela – era a grande música. Quem olha com atenção para o seu entorno não pode limitar-se a colocar como maçã de ouro no pau de sebo a música clássica europeia. Ao contrário, acaba operando uma fusão virtuosa em que “nuestras buenas cualidades” ultrapassam confrontos oriundos de um nacionalismo estrito, tosco, e passam a dialogar com outras tradições musicais, não só europeias, em pé de igualdade.

Uma corda bamba sobre a qual é obrigatório caminhar. Alguns momentos-chave de suas vidas nos ajudam a entender melhor sua grandeza. No caso de Piazzolla, foram duas epifanias.

A primeira aconteceu em 1933, em Nova York. Emocionado, o menino de 12 anos entrou no apartamento penthouse de Carlos Gardel em 28 de dezembro de 1935. Levava uma escultura em madeira de um gaúcho tocando violão feita por seu pai Vicente, coisa de fã, para o grande astro do tango que viera a Nova York para gravar programas para a NBC. Começava ali uma curta porém intensa amizade entre eles. Gardel não falava inglês e pediu-lhe que o acompanhasse em passeios por Manhattan. Foi assim que Astor tocou seu bandoneon para o ídolo e o ajudou a comprar na Saks da Quinta Avenida uma batelada de 20 camisas listradas multicoloridas, as suas preferidas. Como intérprete de inglês, o menino tirou nota 10. Mas Gardel não gostou do modo como tocava tango: “Mira, pibe, el fueye lo tocas fenómeno, pero el tango lo tocas como un galego”, em autêntico lunfardo, gíria portenha. O menino chegou a atuar em 1935 como jornaleiro em El Día Que me Quieras, terceiro filme de Gardel em Hollywood. Não sei se o menino presenciou, mas deve ter ouvido a então muito divulgada observação de um executivo de Hollywood ao ouvir Gardel: “Ele tem uma lágrima na garganta”.

Talvez a chave para entendermos a essência não só do tango, mas da música revolucionária de Piazzolla, seja esta: ele transportou para a música instrumental o poder inigualável de um gênero essencialmente popular, nascido e nutrido no baixo mundo portenho. As letras são melancólicas, trágicas até o épico (um épico meio brega, reconheça-se), que nos adentram a alma feito punhais de sentimentos, diria um poetastro parnasiano. Pois me atrevo a afirmar que Piazzolla cultiva uma lágrima em seu bandoneon, como Gardel na garganta.

Lágrimas, entretanto, não significam necessariamente música de qualidade. Aqui, Astor teve uma dupla epifania: primeiro, adolescente conviveu com o blues e as big bands na Nova York dos anos 1930. A volta a Buenos Aires marcou o mergulho mais fundo no universo do tango portenho, por meio do trabalho com o grande Anibal Troillo, para o qual fez arranjos e com quem, aliás, tocou em 1952 no Copacabana Palace, no Rio de Janeiro. No mesmo ano, sua Sinfonietta para Orquestra de Câmara Opus 19 foi escolhida pela crítica argentina como melhor obra erudita. Graças a outro prêmio, também ganhou bolsa de estudos do governo francês. Lá encontrou a célebre professora francesa Nadia Boulanger (1887-1979). Foi sua epifania final – e mais significativa. Nadia foi a maior parteira dos grandes músicos do século 20 – e não só eruditos. Pierre Boulez e Leonard Bernstein, Aaron Copland e Egberto Gismonti, Almeida Prado e Quincy Jones – todos a idolatraram. Ela sabia encaminhá-los para suas verdadeiras vocações. “Foi como estudar com minha mãe”, disse Astor amorosamente. Depois de ouvir sua Sinfonietta citada acima, ela foi direta: “É música bem escrita, mas falta-lhe sentimento”. Ele caiu em depressão por alguns dias. Nadia então lhe perguntou que música tocava na Argentina. “A contragosto, admitiu que era tango”, escreve Maria Suysana Azzi, coautora com Simon Collier do livro Le Grand Tango – The Life and Music of Astor Piazzolla, 2000). “Mas eu adoro tango. E em que instrumento você toca tango? Imagino que não seja o piano.” Mesmo sabendo que era o bandoneon, pediu-lhe que tocasse um tango ao piano. No oitavo compasso, interrompeu-o: “Isto é Piazzolla!”. Em entrevistas posteriores, Astor reconheceu a epifania: “Ela me ajudou a me encontrar comigo mesmo”.

A lágrima jamais lhe abandonou os dedos, fosse ao bandoneón ou compondo e arranjando música da mais alta qualidade.

Em 1990, antes de sofrer um AVC que o levaria à morte dois anos depois, no dia 4 de julho de 1992, Astor “previu” o futuro glorioso de sua música: “Tenho esperança de que minha obra será ouvida em 2020. E no ano 3000 também. Às vezes tenho certeza disso, porque a música que faço é diferente… Terei um lugar na História, como Gardel… Minha música pode agradar ou não, mas ninguém pode negar que ela é boa: é bem orquestrada, é nova, é deste século, e tem o perfume do tango, que é o que a torna atraente no mundo inteiro”.


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