Um estudo publicado no Journal of Experimental Social Psychology e feito pela Universidade de Princeton revelou que registrar momentos constantemente pode prejudicar significativamente a memória do evento vivido. Os participantes que registraram suas experiências apresentaram um desempenho cerca de 10% pior em testes de lembrança em comparação com aqueles que apenas vivenciaram o momento, sem publicá-lo digitalmente. Em tempos de hiperconexão, em que tudo se transforma em conteúdo, vivenciar se torna secundário diante do impulso de compartilhar.
Essa constatação lança luz sobre um fenômeno que vai além da simples distração causada pelo celular. A necessidade constante de registrar e compartilhar pode estar, na verdade, apagando parte do que vivemos. A memória, que depende da atenção plena e da presença emocional, perde força diante da mediação tecnológica.
O Burst Festival, realizado em Amsterdam, chamou atenção ao proibir o uso de celulares durante a festa. Os aparelhos foram lacrados em bolsas individuais, impedindo que os participantes registrassem fotos ou vídeos. A iniciativa, que já inspira outros eventos como o No Art Festival, a residência da Afterlife em Ibiza e festas no Brasil como a ERRORR, se apoia em uma pergunta essencial: o que perdemos ao transformar cada experiência em conteúdo? Para muitas pessoas, o excesso de registros e a preocupação com a imagem digital têm se tornado obstáculos à vivência real do presente.
A pressão por transformar tudo em story é apenas uma face de um cenário mais amplo. A vida conectada exige atenção permanente. Notificações, mensagens, e-mails e interações constantes impõem uma lógica de hiperdisponibilidade. O celular está sempre por perto e com ele, a expectativa de resposta imediata. Esse padrão tem impacto direto na saúde mental. O simples fato de estar acessível o tempo todo pode gerar ansiedade, dificuldade de concentração e fadiga.
A psicanalista, filósofa e autora do livro O Caminho para o Inevitável Encontro Consigo Mesmo, Ana Matos, afirma que esse estado de prontidão constante rouba da mente a possibilidade de descanso real. Para ela, estabelecer limites entre o tempo online e o tempo pessoal é um passo essencial para preservar o bem-estar psíquico.
“Em um mundo onde tudo se transforma em conteúdo, precisamos resgatar o valor da experiência vivida em sua inteireza. Estabelecer limites, desconectar-se, proteger o tempo de presença consigo mesmo e com os outros não é um luxo: é uma necessidade para a saúde mental e emocional. A exaustão digital não é apenas um cansaço físico, é um esgotamento da alma, um chamado urgente para nos reencontrarmos com aquilo que é real, íntimo e profundamente humano”, pontua a psicanalista.
Segundo ela, esse estado contínuo de prontidão impede o verdadeiro descanso psíquico. O sujeito hiperdisponível se fragmenta: vive dividido entre o agora e a construção de uma presença digital. A fronteira entre o tempo pessoal e o tempo online se dissolve, deixando pouco espaço para o silêncio, a introspecção e o olhar para si mesmo.
Dados da plataforma Eventbrite reforçam esse movimento. De acordo com uma pesquisa, 69% das pessoas afirmam que se sentiriam mais conectadas ao momento se usassem menos o celular em eventos. A tecnologia, portanto, deixou de ser apenas uma ponte e passou a ser também um filtro que, por vezes, distância.
Desconectar, nesse contexto, não é um gesto nostálgico, mas uma necessidade contemporânea. Não se trata de rejeitar o digital, mas de reencontrar o equilíbrio. Nos relatos de quem participou de eventos sem celular, surgem sensações quase esquecidas: liberdade, espontaneidade, conexão com o próprio corpo e com o outro.
Ana Matos observa que a lógica das redes sociais, das notificações e da expectativa de resposta imediata cria uma sensação constante de urgência como se estivéssemos sempre em dívida com algo ou alguém. “Estamos sempre online, disponíveis, atentos a tudo menos a nós mesmos”, explica. Segundo ela, essa presença digital ininterrupta afeta diretamente nossa saúde emocional.
“Muitos pacientes me relatam cansaço sem motivo aparente, dificuldade de concentração, ansiedade crescente, necessidade de saber sobre tudo que está acontecendo, angústia pelo excesso de aprovação e comparação”, relata. “E quando vamos investigando com mais profundidade, encontramos um padrão: a mente nunca descansa. Está sempre em estado de alerta, acompanhando o fluxo de informações, mensagens, demandas, curtidas, postagens e a busca do mais e mais.”
De acordo com a psicanalista, esse ritmo também gera um esvaziamento emocional. Quanto mais nos expomos, mais difícil se torna sustentar uma relação íntima com o que sentimos de verdade. “Vamos nos moldando ao olhar do outro, ao algoritmo, à performance. E quando isso vira rotina, a desconexão interna se instala de forma silenciosa, mas profunda. Não paramos para nos ouvir, muito menos sentir”, reforça.
Estabelecer limites entre o tempo online e o tempo pessoal, segundo ela, não é sobre “fugir do mundo digital”, mas sobre criar espaços de respiro em momentos em que a mente possa repousar, reorganizar-se e voltar a sentir com mais presença. Ana propõe uma reflexão: “O quanto você tem vivido de verdade o que sente, o que pensa, o que deseja sem precisar postar, mostrar para o mundo?”
A ausência de registros não empobrece a memória. Ao contrário, pode fortalecê-la. Quando a atenção não está voltada para o enquadramento da imagem perfeita, sobra espaço para o instante vivido de forma plena. Em vez da ansiedade de capturar tudo, vem a entrega àquilo que não precisa ser compartilhado para ser real. Para Ana Matos, esse é justamente o ponto: “Quando conseguimos nos desconectar, damos espaço para a experiência em si, não para a performance dela. O que não é postado ainda assim é vivido e talvez com mais intensidade”, reflete.
Essa desconexão, no entanto, cobra um preço alto. “Ansiedade, sensação de vazio, irritabilidade, dificuldade para descansar, para se concentrar, para se relacionar com profundidade. Muita gente se sente sozinha mesmo cercada de pessoas. Isso não é à toa. Estar desconectado de si é, muitas vezes, o primeiro passo para se sentir desconectado do mundo”, finaliza a psicanalista.
Para Ana, a saúde mental depende de presença no que sentimos, no que precisamos, no que está vivo dentro da gente. E isso exige tempo, silêncio, escuta e coragem para pausar. “Autoconhecimento não é luxo, nem modinha. É necessidade. É um caminho para voltar a habitar a própria vida com mais verdade, com mais calma, com todos os sentidos”, afirma. E propõe, uma reflexão: “Pare e respire: o quanto você tem conseguido estar verdadeiramente presente na sua própria vida?”
Se a hiperconexão virou norma, talvez seja hora de experimentar o contrário. Os momentos mais significativos raramente se tornam conteúdo. E é possível que os mais inesquecíveis da vida jamais passem por uma lente.