- Publicidade -
23 C
Balneário Camboriú
Enéas Athanázio
Enéas Athanázio
Promotor de Justiça (aposentado), advogado e escritor. Tem 60 livros publicados em variados gêneros literários. É detentor de vários prêmios e pertence a diversas entidades culturais. Assina colunas no Jornal Página 3, na revista Blumenau em Cadernos e no site Coojornal - Revista Rio Total.
- Publicidade -
- Publicidade -

Ô DE CASA!

Era ela.

Quando essa idéia estralou, com a violência do tiro, pulou nos pelegos em que deitava. Com muito esforço conseguiu manter a cabeça no couro do socado, feito travesseiro. Uma sensação apaziguadora o invadiu aos poucos, espalhando-se como um torpor. No repente, entendeu com surpresa que aquela conclusão, – agora uma certeza, – era a resposta que campeava nas andanças de gaudério, eterno andejo sem rodeio e sem querência, o coração reiúno e sem presilha.

Incrível que só agora entendesse! Pois se tinham crescido juntos, brincando no piquete e no galpão, ela com as bruxas de pano, ele com os bois de sabugo. Troteando engarupados no petiço cambaio, proseando deitados na raiz do umbu, catando araçá e guamirim. Com os cabelos dourados, caídos em cachos pelos ombros, os olhos azuis e os dentes pequenos, a pele amorenada pelo sol, ela aparecia nítida na recordação.

Aquilo foi bom. Calma e alegria se misturavam. Ajeitou-se nos pelegos, observou com olhos brilhantes, através dos galhos das árvores, as estrelas que piscavam no céu limpo. Puxou o poncho e cobriu o rosto com o chapéu grande, ouvindo o martelar dos sapos no banhado e o cricrilar dos grilos na noite quieta.

O cusco dormia, enrolado perto dos seus pés, e do fogo de chão só restavam alguns tições vermelhos.

Amanhã mesmo começava a viagem de volta. Ia, afinal, sossegar o pito.

Tão bom, aquilo.

O sol, bem degavarzinho, espalhava a luz amarelada sobre o tapete verde. Faiscava nas moitas o orvalho noturno e a passarinhada se mexia barulhenta para a luta do dia nascente. Em passos lerdos, o gado se dispersava pelo campo, nem ligando ao vento frio que chacoalhava de leve as folhas dos capões.

Recortado com nitidez no alto da coxilha, ele troteia com decisão pelo antigo carreador coleante, vincado no chão pelo rascar contínuo de patas. Como que adivinhando o retorno à querência, o lubuno está fogoso. Mas é preciso encurtá-lo no freio, que é muito longo o tirão.

Chapéu quebrado na testa, um violão enviesado nas costas, o cavaleiro tem a fisionomia alegre e o olhar pregado no horizonte. Não consegue conter o assobio e vai assuntando na chegada. Vencido o vau da canhada, abre a porteira do rapador e sobe no galopito no rumo da casa. Com o cabo do arreador baterá na parede, gritando porta adentro:

“Ô de casa! Não tem fogo nem brasa nem o dono da casa?”

Cachorrada acoa nos fundos, os gansos gritam assustados, passos ligeiros no soalho de pinho lustrado. E ela, conhecendo a fala, aponta na porta, um vestido caseiro, compondo a cabeleira dourada. 

É tão bom que não se controla. Solta um grito forte que ecoa na solidão do campo, arranca da garrucha e dispara um tiro seco para o alto. Depois, numa voz afinada, canta com alma uma toada cheia de sentimento:

Chê, Florência,

Quero lhe falar.

Vem cevar meu mate, Florência, 

Vamos descansar…”

O lubuno, companheiro na alegria, sofrena a rédea e quer galopar. Mas é preciso contê-lo, que é longo o tirão.

São horas de trote batido. Vai alto o sol, o pingo sua um pouco, a espuma branca ensaboando as virilhas, mas não dá mostra de abombar. Arfando forte, a comprida língua pendida, o guapeca segue atrás.

Cruza o Rio do Aranha, a água vagarosa molhando a barriga do cavalo, que bebe com ruído de sucção. O Joli se molha por gosto e o viajeiro mata a sede na guampa de bocal prateado. 

Do outro lado, um lajedo úmido e coberto de musgo escuro é um ameaço de rodada. Mas o lubuno é guapo e vence em passos curtos e seguros. Quando pisa de novo a terra firme, o cavaleiro o afaga de leve no pescoço.

Atravessa um pinhal inceiro e sombreado. Chão limpo e macio, as patas do animal fazem um som estranho, lembrando terra ocada. Gralhas, em bandos, fazem bulha nas copas altas, que cobrem o sol. O cão dá uma corrida e embica ganiçando para longe do carreiro. Há de ser tatu, ou lebre. Trocando as orelhas empinadas, o lubuno resfolega atento.

Reabre-se o campo e a largueza de horizontes é um alívio. Pela boca da noite o viajante chega a um bolicho de beira de estrada. Engole um café com bolinhos da graxa, maceta uns pinhões sapecados. Mateia com o dono, conhecido doutras andanças, porém está arredio à prosa, perlongada em ocasiões anteriores. Dá um trato de rastolho ao lubuno e o Joli se satisfaz com uns restos de revirado. Rapaduras e pães de milho enchem o pessuelo do cavaleiro apressado.

E a viagem recomeça pelos fundos carreadores, vincados pelo rascar de patas. É um terreno inçado, onde o amarelo do caraguatá espinhento se mescla com as toiças ásperas do barba-de-bode. Montículos de cupins se espalham, com os cocurutos avermelhados e duros, crescendo em desalinho. Só um vaqueano para manter o rumo naquele carrascal.

Domina o silêncio da noite quando o solitário escolhe o pouso. Livre dos arreios, o lubuno pasta com avidez, indiferente à maneia incomodativa. Depois de estirar, o viajante deita nos pelegos e sente o prazer do repouso da puxada braba. Escuta a música das águas dum córrego e namora o céu estrelado através das galhadas. Está mais perto, mais perto. Imagina outra vez a cena da chegada:

“Ô de casa!”

Tão bom, aquilo. 

O cavaleiro sente por debaixo das pernas que o cavalo está desagüachado, tem o tranco mais curto, reduzida a disposição – mas longe de abombar. Apesar da querência próxima, já não força as rédeas e nem masca o freio.

Viaja, agora, num chão conhecido. É o seu chão, tudo é familiar, as curvinhas da estrada, as sangas e as lagoas, os capões e as árvores escoteiras. Conhece vê a palma da mão.

Ameaçou tormenta, mas não veio, e o paredão preto fugiu para longe. Um pó vermelho, levantado pelo vento, lhe dá a sensação da sujeira. Em pouco o céu brilhava no anil do céu.

Calculou que pelas onze chegava na Vila. Meia légua além e parava no destino. Quando pensava na chegada, o coração pulava, esquecia a canseira, pegava a assobiar entredentes. A pancada do arreador na parede, um grito alegre pela porta adentro:

“Ô de casa!”

Avistou lá longe o casario cinzento da Vila e sentiu uma alegria de criança. Deixou a estrada e seguiu por um caminho velho e tortuoso até a cascata. Desencilhou o lubuno, lavou-lhe o lombo e largou-o pastando por ali. Num instante se pelou e entrou debaixo da água que esguichava das pedras limosas, tal e qual como em menino. Entre urros e bufos, rangendo dentes no frio cortante, esfregou-se com força. Vestiu-se de novo, trocando a camisa por uma florida, tirada do pessuelo.

Apereou o cavalo, sacudiu o guariba vermelho, arrumou a capricho o poncho na mala, ajeitou o pessuelo e o laço nos tentos. Num último requinte, atou a cola do lubuno, um nó esmerado. Afinal, cavalo bem apeirado, sojeito recomendado. Quebrou o chapéu na testa, acomodou o violão. Afagou o pingo de estima e principiou o derradeiro estirão.

Reanimado, o cavalo venceu rápido a distância. Sem demora o cavaleiro descortinou a Vila, as casas descoradas, as ruas em cruz. Embicou pela reta da igreja que sobressaía, muito branca, solita no topo da coxilha. Notou um movimento incomum, bandeirolas coloridas cercando o pátio das festas, cavalos, carretas e aranhas diante da capela, que tinha as portas abertas. Visita do padre, – imaginou, – há de estar rezando missa. Amiudou o passo e se achegou degavar. Quando viu o casamento que saía, estacou para bombear, uma ânsia de participar da alegria. Pois decerto era um conhecido; todos ali eram conhecidos.

Ficou no pátio gramado, bem na frente da igrejinha. O chapéu dobrado na testa, o violão trespassado nas costas, a camisa nova, florida e brilhante. Sua sombra se desenhando na alvura da parede, o sol claro destacando a figura bizarra e isolada no pasto muito verde, os olhos grudados na porta escancarada.

Pessoas se abriram e a noiva apareceu. Cabelos louros e encacheados caíam sobre os ombros, a pele tostada envolvida em rendas que coruscavam na claridade da manhã. O sorriso de dentes pequenos espelhava felicidade.

Quando a conclusão estralou, com a violência do tiro, deu um pulo nos pelegos que montava.

Era ela.

- Publicidade -
- Publicidade -
- Publicidade -
- Publicidade -