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Enéas Athanázio
Enéas Athanázio
Promotor de Justiça (aposentado), advogado e escritor. Tem 60 livros publicados em variados gêneros literários. É detentor de vários prêmios e pertence a diversas entidades culturais. Assina colunas no Jornal Página 3, na revista Blumenau em Cadernos e no site Coojornal - Revista Rio Total.
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STEFAN ZWEIG (2)

Como dizia meu saudoso amigo Joaquim Inojosa, ler memórias e biografias é aprender com a experiência alheia. Daí talvez a razão pela qual esses gêneros literários, em outros tempos tão desvalorizados, têm hoje enorme número de leitores aficionados, entre os quais me incluo. Alguns escritores brasileiros foram extraordinários memorialistas e se notabilizaram no gênero, como foram os casos de Humberto de Campos, Gilberto Amado e Pedro Nava. Biógrafos de talento foram e são numerosos; nossa literatura é rica no gênero.

Essas observações me ocorreram ao concluir a leitura das memórias do escritor austríaco Stefan Zweig (1881/1942), que foi objeto de meu comentário anterior. “O mundo que eu vi”, publicado entre nós pela Editora Record, em tradução de Lya Luft (1999) reúne as lembranças de um apaixonado pacifista que, não obstante, sofreu os efeitos das duas guerras mundiais, em especial da segunda, cujas consequências pessoais foram catastróficas, gerando nele a profunda depressão que acabou por levá-lo ao suicídio aqui no Brasil, em Petrópolis, onde está sepultado. Judeu de família bem sucedida, teve uma infância feliz, estudou nos melhores colégios e universidades, doutorando-se em Berlim. Poeta, ficcionista, ensaísta, dramaturgo, biógrafo e articulista, tornou-se um dos mais populares escritores europeus no período entre guerras e o mais traduzido de então nos mais variados e exóticos idiomas. Em paralelo, foi dedicado colecionador de autógrafos e originais, formando valioso acervo.

Com a chegada de Hitler ao poder, no entanto, suas antenas sempre ligadas captaram os sinais da prepotência e do obscurantismo que viriam em breve e que a Europa parecia ignorar ou tolerar. Começaram aos poucos e depois com crescente intensidade as limitações de direitos e perseguições aos judeus, até que tudo lhes foi tirado, inclusive a vida. Homem sensível e de gosto refinado, apolítico e pacifista por convicção, foi calando no fundo da alma cada golpe sofrido pela sua raça. Prisões arbitrárias, interrogatórios na calada da noite, torturas, invasão de residências, confisco de propriedades e dinheiro se tornaram comuns. Até os amigos mais chegados o evitavam, sentindo-se ameaçados. Não tardou a ser forçado a abandonar sua casa em Salzburgo, com seus livros, quadros, obras de arte, coleção de autógrafos e tudo mais para refugiar-se em Londres. Num passe de mágica, de cidadão em pleno uso dos seus direitos, passou a ser um emigrado, um desterrado, um pária, um sem-pátria vivendo de favor em chão alheio, uma vez que até o passaporte lhe foi confiscado. Depois, na sequência, começa a perambular pelos países como um ente perdido no mundo, sem ter para onde voltar, rejeitado por muitos governos temerosos das retaliações hitleristas quando os nazistas pareciam prestes a dominar o mundo. E então chega ao Brasil, onde foi bem recebido, e continuou a produzir, escrevendo inclusive seu célebre “Brasil, país do futuro.” Mas as sombras e os temores não o abandonaram e a eles não conseguiu resistir.

Evadindo-se de Viena, lá deixou a mãe idosa, com mais de oitenta anos. Ficou mortificado ao saber que ela, nas pequenas caminhadas pela redondeza, fora proibida de sentar-se nos bancos da praça, interditados aos judeus. Nos descansos dos curtos passeios, tinha que sentar-se no chão. E quanto a ele próprio, viu seus livros retirados das livrarias, queimados nas ruas em renovados autos-de-fé medievais, e proibidos de ser reeditados. Óperas cujos libretos havia escrito e peças teatrais de sua autoria foram interditadas. Fechava-se sobre ele um círculo de ferro que o estrangulava, retirando-lhe até mesmo a identidade. Como também acontecia com milhões de outros, pelo “crime” de serem judeus, entre os quais Sigmund Freud, o pai da Psicanálise, expatriado em Londres, com quem muito conviveu em seus últimos anos de vida. Nem os mortos foram poupados, até eles foram discriminados e suas estátuas retiradas dos pedestais.

“Por três vezes derrubaram minha casa e existência – escreveu ele, – apartaram-me de tudo que existira e passara, e com uma veemência dramática lançaram-me no vazio, no conhecido “não sei para onde ir…” Perder a própria pátria, concluiu, não é apenas sentir sob os pés a ausência do chão natal.

Eis um livro que deveria ser lido por todos que suspiram saudosos da ditadura e que, em vez de aprimorá-la, votam em figuras ridículas e despreparadas para desmoralizar nossa democracia.

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