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Balneário Camboriú
Marisa Zanoni Fernandes
Marisa Zanoni Fernandes
Ex-vereadora em Balneário Camboriú, é doutora em educação e professora universitária.
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Fechada para balanço

Dentre as inúmeras memórias da infância, lembro-me de ouvir adultos comentarem e proprietários de comércios no final de ano colocarem nas portas um aviso: “fechado para balanço”. Eu não entendia muito bem o que isso significava, mas minha mãe explicava que a cada final de ano era necessário verificar o estoque de mercadorias, quantificar, analisar o que havia sido comprado, vendido e o que sobrara, para assim, fazer novas projeções. Isso, obviamente, era feito manualmente e anotado em um caderno específico para esse fim.

 Hoje a tecnologia e os programas instalados em pequenos ou grandes negócios fazem o trabalho instantemente – não necessitam “fechar para balanço”.

Eu não comercializo nada, não sou proprietária de algum negócio, mas incorporei o hábito de fazer balanço. Permaneço “fechada” por algum tempo para olhar para o mim mesma. Faço um exercício de olhar para dentro. De percorrer cada canto do corpo, me defrontar com o ritmo da vida e, no ar que compõe essa sincronia, encontrar as visíveis e as invisíveis marcas da caminhada. Uma espécie de autopsia pessoal e de vida, que busca nos erros e acertos, vasculhar causas e consequências de um ano de intensos conflitos, desafios e de esperançosas emoções.

Tenho, nesse movimento, apenas uma certeza – esse é um balanço complexo e muito mais difícil daquele que os comerciantes de outrora faziam. No entanto, necessário e imprescindível para novas projeções e para o sentido que desejo da própria existência.  

Nesse percurso, que penso inicialmente ser solitário, logo me aproximo de fortes presença – não é possível a individualidade porque não estou só. Não ando só. Tenho uma polifonia de vozes que ecoam e que me acompanham nesse balanço. Me conduzem com maestria e me ajudam a encontrar as marcas e os cominhos do meu eu.

Então, no balanço em mim e por mim, lá estão eles. Lá estão elas – não são como como mercadorias, mas como elos preciosos e de valor incomensurável do patrimônio da minha existência. Encontro eles e elas como a melhor grife que desfila nas marcas de cada experiência.

São amigas e amigos que, de longa ou curta data, ampliam meu horizonte, enchem a vida de novos ares oxigenando e renovando meu riso, meu sizo, meu passo.

São companheiras e companheiros de militância que engendram desafios coletivos e da vida pública e me alçam para desafiantes tarefas. Nelas vejo o eu mais plural em mim, aquele que forja a saída do narcisismo e mobiliza encontros e confrontos com a coletividade, com a vida em sociedade.  Olhando sob esse aspecto, impossível não encontrar dores, mas é o sabor e o calor de um trio elétrico que anuncia sem medo as posições e tremulam as bandeiras sedentas por justiça social, que compõe a parte mais vibrante de em mim.  Nela não há derrotas.

São familiares que inspiram o melhor dos cantos mesmo que eu seja extremamente desafinada. Esses, é só percorrer a alma que lá estão eles marcando o passo, refrescando o descompasso, compondo e recompondo a essência dos meus princípios. São refúgio e acalanto das minhas maiores e até egoístas paixões.

Tem é claro, nesse balanço a presença de profissionais de tantas áreas – muita gente virou especialista em conselhos, mas nesse balanço tem a balança do peso, do exercício físico e mental, com eles e elas reconheço que o peso invisível aos olhos podem ser o maior fardo a se carregar. Assim, da atividade física, da medicina, da nutrição, da psicanálise, dos conselhos – tenho suporte que sem eles não conseguiria encontrar um eu sempre renovado, uma identidade com o limite da idade, mas sempre aberto a novas possiblidades.

Tem os livros, as músicas, os filmes, as minhas plantas, a cozinha e tantas coisinhas que preenchem o meu interior que eu poderia parar em cada uma delas por horas e extrair ótimas narrativas – mas isso deixo para outro livro de balanços ou para o divã, quem sabe para aquela roda de conversa acompanhada por um vinho ou um pão quentinhos –  outra partes em mim.  

 Afinal, quem além de você mesmo pode se interessar por esse balanço? Quem pode ser afetado com o que você fez durante esse ano? Quais os impactos da minha existência no outro, na comunidade em que vivo?    Seria arrogância pensar que tenho alguma importância nesse mundo tão frenético e ansioso por balanços numéricos e lucros?

Bem, Olho para a chuva que cai e novamente castiga nossa região e me dou me dou conta que ela também pode ser um mote para a autorreflexão – deslizo como ela percorrendo um caminho que me convoca ao autocuidado. A um caminho de responsabilidade sobre minha saúde – aquela integral e integradora, de um eu completo e complexo. De um eu que navega em mares agitados, que encontra calmaria nas pequenas gotas de orvalho sobre as plantas e logo refúgio nas palavras que escrevo como registro daquele antigo livro de balanço – hoje em desuso.

Deslizo em um eu que coloca o corpo em rodopios e permite explorar movimentos com liberdade de criança e embalar a esperança mesmo na dor das tempestades. Um balanço do eu que me desestabiliza porque nessa busca não há um ponto de chegada.  Ela apenas me ensina que quanto mais percorro em mim, mais caminhos e histórias encontro e, então, percebo que há uma magia presente no percurso e em cada experiência. Há uma magia em cada possibilidade de existir e cada escolha feita haverá um balanço a fazer.

Assim, estou fechada para balanço e aberta a novos percursos em mim, mas sempre comprometida com tudo aquilo em mim afeta um nós. Um exercício, quem sabe necessário e mobilizador de valores éticos e integrados a ideia de uma existência voltada a preservação do ambiente e da vida em comunidade. O balanço que inclui os mais vulneráveis – são elas, são eles que hoje choram as perdas e são essas lágrimas que percorrem também em mim e afetam todos nós.

Façamos um balanço para termos outras escolhas no ano que se aproxima. Quem sabe assim, possamos um dia de sol e chuva na medida certa.

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