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Enéas Athanázio
Enéas Athanázio
Promotor de Justiça (aposentado), advogado e escritor. Tem 60 livros publicados em variados gêneros literários. É detentor de vários prêmios e pertence a diversas entidades culturais. Assina colunas no Jornal Página 3, na revista Blumenau em Cadernos e no site Coojornal - Revista Rio Total.
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POESIA E SAUDADE

Depois do excelente ensaio de autoria do Prof. João Paulo Araújo de Carvalho e da manifestação de Santo Souza, príncipe dos poetas sergipanos, é uma temeridade comentar a poesia de Manoel Cardoso reunida no volume “Tempo Submerso” (Netebooks Editora – S. Paulo – 2023). No entanto, para não parecer que silenciei, arrisco-me a traçar algumas linhas a respeito.

A leitura me trouxe à lembrança uma observação antiga. A literatura parece inclinada a inocular seu vírus em garotos e garotas das mais humildes vilas de nosso interior. Tantos são os casos de grandes escritores e poetas nascidos e criados nesses povoados perdidos na imensidão brasileira que poderiam compor uma considerável relação, a ela acrescentando-se o sergipano de Enforcados Manoel Cardoso. No caso dele, por sinal, existe um dado raro e muito curioso: Enforcados não existe mais, desapareceu. Ele próprio depõe que essa extinção levou consigo escolas onde estudou, deixando um vazio imenso. Imagino a estranheza da sensação de alguém cujo local de origem não existe mais. No caso de Cardoso, porém, a memória privilegiada tudo conservou em pormenores e agora volta, redivivo, em tocantes e sinceros versos.

A poesia deste livro é memorialista, embora longe da atitude patética de quem vive chorando pelo leite derramado. O poeta reconstitui locais, cenas e personagens aureolados numa moldura de amor e ternura. Enforcados e arredores ganham vida nas suas palavras e ele as distribui a quem “acredita no efeito/ mágico/ do meu verbo” (p. 11). 

Do alto da plataforma antiga, “a única foto esbranquiçada/ de um tempo submerso/ emerge nas malhas do presente.” Porque “Enforcados/ Dores/ toponímia idêntica/ signo de desgraça/ acompanhou o pueblo/ desde o nascimento” (pp. 14 e 15). Dali descortina o panorama. “O mar de Enforcados/ o farol da matriz/ conduzia o navegante/ por entre abrolhos/ e escombros.” E além, “A casa branca/ de azuis janelas/ na rua plantada/ das mangueiras/ corredores longos/ secretas camarinhas/ mistérios e penumbras” e “à meia distância/ o sombrio mundo/ das jaqueiras/ morada de saguins/e bem-te-vis.” (p. 17).

As cenas da vida cotidiana vão se sucedendo na lembrança. Dramas e comédias como em toda parte onde esteja o ser humano. “Mulheres à janela/ lendo das ruas a notícia/ o pasquim diário/ gratuitamente circulando” (p. 18). Mesmo as mais puras “se chamuscavam/ ao fogo dos olhares/ disparados dos quatro/ maliciosos cantos/ da cidade” (Idem). E o açude? “O açude era um mar/ parecido ao que falavam/ um mundão de água/ de não se avistar/ a outra margem? ” Seria mesmo tão grande ou foi efeito do tempo? (p. 20). Mas a realidade é dura e o poeta lamenta: “Arquivaram-se as pedreiras/ poluiu-se o açude/ acabaram-se as matas ciliares/ extinguiram-se os riachos/ é um fio d’água o Sergipe/ agora”. – “Tem muita sede Sambaíba./ Que fizeram das águas/ do antigo reino/ de Enforcados?” (p. 31).

Onipresente, o açude volta à cena. “Perfumadinho tinha encontro/ suspeito a caminho do açude/ o que abalava os pilares da cidade/ de máscula aparência” (p. 32). A maledicência marcando presença. Naqueles dias “O menino ainda não sabe/ que é capaz também/ de multiplicar a vida/ser um criador do Gênesis.” – “Ignora o menino sua força/ de um deus pequeno” (p. 47). Voltando os olhos ao passado, o poeta questiona: “Que imã existiria/ na antiga Enforcados/ que depois de tanta/ caminhada/ meu espírito ainda ali/ busca guarida1” (p. 61). E conclui: “É tempo de reunir/ todos os cacos e ecos/ colar todos os fragmentos/ e tentar reconstruir/ a nave destruída!” (p. 69). Conformado, o poeta conclui: “Quem foi picado uma vez/ pelo aguilhão da poesia/ não mais adquirirá/ imunidade à emoção/ ao enlevo/ à transmigração” (p. 69).

Console-se, poeta! Enforcados não desapareceu. Passou a existir dentro de nós.

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