O Página3 publica todos os anos entrevistas com os antigos da praia. Essa foi publicada em julho de 2020. Confira a memória.
Nascida no Estaleiro, memória de quem sabe, à base do peixe e da roça
Nascida na Praia do Estaleiro, em 8 de dezembro de 1923, Dona Maroca, é história viva de Balneário Camboriú. Com memória impecável e a saúde de quem “passou a vida na base do peixe”, Dona Maroca está bem, só lamenta a falta de passeio e a visão embaçada, que não permite mais leitura, coisa que gostava muito de fazer. “Aprendi a ler muito bem”, orgulha-se a menina criada na terra.
nasci aqui
me criei, me casei, quatro filhos,
dois morreram pequenininho
a Lourdes e a Neusa se criaram
sete netos, bisneto, tataraneto de oito anos
meu pai pescava
morreu com 90 anos
chamava-se João Sabino Rosa
nascido e criado no Pinho, chamavam João do Pinho
minha mãe
era Maria Augusta dos Passos,
foi criada aqui no Estaleiro
somos da gente dos Simas,
meu marido era Manoel Simas
tive na escola
queria muito ir pra escola, aprendi a ler muito bem
ia estudar na Barra de Camboriú
ia de pé, eu e umas colegas
(já morreram tudo)
estudava lá, meu pai achou longe
arrumaram com a política
botaram uma professora aqui no Estaleiro
era na casa de meu pai
estudei até a terceira série
sabia ler muito bem
ainda sei
mas não enxergo mais
fiquei viúva com 27 anos
criei as duas, andava por aí tudo,
ia em Camboriú, fazia compra,
conhecia todo mundo,
todo mundo me conhecia
trabalhei na roça
fazia farinha
apanhava café
parteira não era, mas minha madastra sim, a Loló
benzia agora não benzo mais
benzia porcaria na boca das crianças,
aquela bobiça da gente né
era fé né
sei ler muito bem, mas nem enxergo mais
o que mais a senhora gostava de fazer, Vó Maroca?
torrar café, lavar roupa
trabalhar na roça, como eu gostava
plantava feijão, aipim, batata doce
aqui onde to morando tinha engenho de farinha,
vinha cedo de madrugadinha fornear com os outros,
nós mesmo, meu marido, fiz muita farinha
cozinhava
ler, ler…
como eu gostava de ler
a comida era boa, vinha da terra
o peixe, a gente comia com gosto,
agora nessa geladeira perde tudo o gosto né nega
a gente pouco comprava, só quando o mar tava ruim
meu pai era pescador, matava muita corvina, tainha…
agora acabou-se tudo né minha filha
no tempo da tainha
matava o peixe aí, era uma coisa de louco
no tempo da tainha né
quando essa filha mais velha nasceu (1950) deu uma tainhada que foi uma barbaridade, tainha à vontade… quando ela tinha um aninho deu novo, foi a última vez que deu tainha daquele jeito aqui no Estaleiro
vivia da roça e da pesca
como vivia? da roça e da pesca
quando dava tempo bom, porque no mar grosso ninguém ia pescar
em muito dia o mar era ruim, não dava pra tirar peixe, marisco
comia à base do feijão ensopado com pirão
a galinha a gente enjoava, comia dois três dias enjoava
não tinha geladeira, fogão à gás
só fogão de lenha
e quando alguém
ficava doente, vó?
olha, me deu uma pontada de pneumonia, fiquei três meses no fundo da cama
ia lá na Itapema, no tal do Fedoca, que dava remédio… ia de pé
ia de pé até lá
lembro de tudo, de tudo, de tudo
não me esqueço de nada
essa garrafada, quero fazer pra mim
ontem ainda tava me lembrando
me deu sarampo, fiquei muito fraca
ela agarrou-se e disse
vou fazer uma vitamina pra ti
mandou buscar o vinho
de mesa né
quebrou meia dúzia de ovos
só a gema, não a clara que não presta
fez aquela gemada com açúcar
botou canela, noz moscada
dois cravo da índia
e uma colher de margarina
que naquele tempo era manteiga
feita em casa que nós tinha leite
fez aquela vitamina
óia tão gostosa, tão gostosa
dava tainha
tainha escalada,
nem vi mais
escalava a tainha e botava na vara
uma estaca lá outra cá
o bambu e a tainha toda estendidinha com a colinha no ar
secava bem sequinha
ela ficava toda amarelinha
pra guardar a gente botava uma folha de banana seca
e botava a tainha com o carnado do peixe pra folha
botava outra folha e outro peixe e outra folha
ficava aquele balaião cheio
amarrava um pano em cima
acabava o tempo da tainha
mas nós tinha tainha que não acabava mais
cozinhava na água e comia com pirão de feijão
aquilo era bonito
a ova era tanta que secava em peneira
a moela, salgava, fazia aquele rosário de moela num cordão
e depois de seca botava no feijão
gostosa, gostosa, nem vi mais moela
fígado a gente gostava tanto daquele figuinho do peixe
aproveitava tudo
a ova… amarelinha eu gosto mas a branca não
nunca gostei
me representa uma lesma rapaz
ui
tinha festa (e tinha que poupar o tamanco)
ó nega
não tinha igreja
não tinha ‘luize’
farmácia mesmo nunca teve
não tem até agora
não tinha escola
nada
era um deserto
aí arrumaram uma casa,
forraram tudo
com umas colchas de chitão bonita
pra rezar a novena de Santo Antônio
fazer um tipo de uma igreja
pros nove dias de novena
mês de junho nós ia rezar o terço lá
no dia da festa
cortava o palmiteiro no mato
enfeitava a frente da casa
fazia lanterna
era uma beleza um festão
João Batista era o capelão aqui
rezava aquilo tudo
saía leilão, doce, bolo,
depois do terço fazia o baile,
dançava a noite inteira.
tinha até tocador
sim, o Manoel Firmino era tocador de gaita, meu primo
na Barra nós ia à festa
a gente não tinha um sapato pra botar no pé, conseguimos um tamanquinho, mas levava na mão e calçava na praça da igreja pra não estragar, não gastar o tamanquinho
sapato no meu pé fui ver no dia que me casei
a senhora pensou que ia ver uma doença dessa na vida?
quando era pequena, tinha 7, 8 anos, lembro que deu uma gripe muito forte em Itajaí, a minha avó morava lá, minha mãe deixou eu e minha irmã com minha tia e foi cuidar dela lá
chamava Espanhola, era um gripão que deu… agora disso (covid) nunca ouvi falar nega
não pode mais abraçar, dar a mão pra ninguém né, nunca vi isso na minha vida
nervoso de não enxergar
de uns anos pra cá perdi minha visão,
não destrincho quase nada
lia muito bem, agora não enxergo nem a bíblia
me dá um nervoso, um nervoso, ai viro a chorar né nega
hoje em dia tá cheio aqui né vó? cheio de gente, de casa
tá né nega, e a maioria é gente de fora … esses condomínio, tudo de fora, mas quando me criei era só gente daqui mesmo, tinha essa casa aqui, que é muito antiga
a da tia Osória pra banda da Silva, e lá nos Canudo, chamado Antonio Torquato e o Capitão Thomaz, que era outra família né
eu era pequena mas ainda me lembro meu pai dizendo “ó o barco do Capitão já tá entrando” um barco veleiro, por isso aqui ficou com nome de Estaleiro
esse barco trazia e levava mercadoria, chegava os barco pra arrumar… aquelas velas tão bonitas o nome da praia ficou Estaleiro por causa dos barcos que eles arrumavam aí
a mãe morreu jovem, picada de cobra
meu pai morreu com 90 anos e a minha mãe morreu nova, com picada de cobra, cobra coral
mordeu ela, morreu no dia 1 de setembro, nós tava apanhando café, eu era nova e disse pra ela, mãe aí tem um formigueiro mãe, era formiga carregadeira
quando ela puxou o pé, tinha aquele arranhão, fomos lá na curandeira de cobra, ela disse que não tinha mais volta… ainda bateu a malária junto, durou só mais 12 dias
quem nascia em Camboriú chamava como?
Camboriuzeno né? E aqui Estaleirense né.
Mato de Camboriú, Itapema, tudo isso conheci
muito dia fui na Itapema, comprar peixe quando aqui não dava, eu mais minha irmã Anita, ia de pé lá na peixaria do Vidinho… não tinha carro, não tinha nada, vinha com aquele saco de peixe por ali afora, não tinha vergonha nada agora tudo cheio de carro, casa, lanchonete tal e coisa né
gostava de ler
Texto: Caroline Cezar